Desejaflição: Ratzara, de Sergio Maciel, e as releituras de um passado poético
Leonardo Antunes1
Ratzara (Dybbuk, 2017), livro de estreia de Sergio Maciel, traz uma coleção impressionante de poemas compostos a partir de reapropriações de um passado poético clássico, filtrado e reconstruído mediante uma poética atualíssima e sob constante tensionamento.
O modus operandi do livro é ilustrado, já na abertura (talvez mais com humor do que com preocupações legais), pela citação da Lei No 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, em seu Art. 47, que regula a liberdade de uso de criações alheias para fins de paráfrase e paródia.
O processo de reapropriação, por meio de tradução livre ou releitura, desde a Grécia e pelos menos até a época de Chaucer, era algo não só perfeitamente cabível mas também parte fundamental dos procedimentos de criação poética. O fato de que Maciel manifeste conhecimento disso ao reler Safo, Catulo (que, aliás, já relia Safo) e Horácio faz com que se abra uma rede admirável de intercontextualidades, como se pode perceber no poema abaixo, que mistura, em mesmo metro, o fragmento 1 de Safo, a ode 1.38 de Horácio e o poema 51 de Catulo:
que sentado sempre diante de ti
venha aqui ó roca-de-ardis eu peço
não procure onde talvez a rosa
dome meu peito
doce e sorridente o que a mim inteiro
mísero me arranca o sentido quando
nem de mim destoa que sob a densa
voz ou palavra
O fato de isso tudo se dar mediante traduções de Guilherme Gontijo Flores e Rodrigo Gonçalves, citados nominalmente, adiciona ainda mais uma camada de sentido ao mosaico do poeta.
Também na abertura do livro encontra-se outra peça-chave para a compreensão do projeto, a começar por seu título. Ali, há um trecho da tradução de Toba Sender para a novela Até agora, de Shai Agnon (Prêmio Nobel de Literatura em 1966), em que se diz:
“Depois peguei as palavras prazer (oneg), abundância (shefa), beleza (shefer) e desejo (ratza), que trocando as letras ficam praga (nega), lodo (refesh), dejeto (feresh), crime (fesha) e aflição (tzara).”
“Desejaflição” (que ecoa o “doceamargo” de Safo) é, de fato, o misto de sentimentos que se faz notar no conjunto desses poemas. “Sangue”, “pus”, “ânsia” ali convivem com “gozo”, “paz”, “flor”, e se entremeiam à onipresença do corpo, como no poema abaixo:
eu sorvi toda tua cota
teu terror em toda terra
teu mestre em todo canto
e exalo meros nomes sítios
síria senegal beirute bom
sucesso sem sentido mas
a sede segue sua causa se infla
e sedentos sorvem sangue
primeiro o anho novo acossa
aquele que mal manja e mirra
mas enquanto a mão prepara
o rombo bom sucumbe bambo
ao solo e o peito aberto estanca
a sede vira as vísceras vasculha-as
espreme o pus aperta as veias
em busca de mais sangue
omnia nostrum sensere malum
e eu aperto ao peito o grito o gozo
Note-se, ainda, o verso em Latim (“todas as coisas sentiram a nossa peste”), extraído do Édipo de Sêneca, abrindo uma fenda interpretativa que justapõe o sofrimento das guerras e desastres atuais com a peste enfrentada pela mítica Tebas.
Mesmo deixando de lado a riqueza de intercontextualidades e citações, os poemas de Ratzara ficam de pé por si próprios, devido à perícia do poeta no trato de imagens e sensações, o que se nota de modo admirável no poema abaixo, talvez o melhor do livro:
que coisa pode ser mais bonita que a noite
(ou ter alguém nos braços)
é nisso que a arte nos pega:
nesse parecer preferir (a nós) e permanecer
inda que uma lua besta um lampião
qualquer
derrame uma luzinha –
ou até o breu –
você vira um retrato num quadro
pedregoso com penhascos
e vales cheios de mandacarus & samambaias
respirando e roçando o céu
que ao fim baixa como um lençol anil de tristes ânsias e
devolve a face vista
não precisa panorama nenhum:
somos só um
fumando no pátio complicado do espaço admirando
a arquitetura
dada aos olhos e ao tempo
que nem o sussurro dum “eu sei que vou te amar”
surgido assim
como se nada
no céu cinza
e então nos unimos
feito dois pirilampos deixando
brilhar a luz por sobre o rio
Ao todo, Ratzara é um belíssimo livro de estreia, cuja técnica poética (com olhos na antiguidade, mas os pés firmemente plantados no presente) deixa o leitor com grandes expectativas para os próximos livros com que Maciel nos presenteará num futuro próximo.
1 Leonardo Antunes é poeta, tradutor e professor de Língua e Literatura Grega na UFRGS.