Arte para ‘ver’ com os dedos: exposição voltada para pessoas cegas traduz obras que já passaram pela Bienal

Obra da artista gaúcha Lenora Rosenfield | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Annie Castro 

No Centro Cultural CEEE Erico Verissimo, no centro de Porto Alegre, uma sala com pouca luminosidade destaca-se das outras. Logo no primeiro andar, as luzes comuns às outras mostras são deixadas de lado propositalmente na Sala O Arquipélago, onde acontece, até o dia 2 de junho, uma exposição feita para que pessoas com deficiência visual consigam ‘ver’ obras de arte por meio do toque.

Criada pela artista plástica gaúcha Lenora Rosenfield, 64 anos, a exposição ‘O Relevo’ traz a tradução de 10 obras que estiveram em edições anteriores da Bienal de Artes Visuais do Mercosul, como ‘A negra’, de Tarsila do Amaral, e ‘Pobladore’, de Graça Barrios. Todas foram feitas com a técnica inédita do afresco sintético, criada pela artista. Como relevos, cada cor, contorno e detalhe das obras estão em diferentes camadas e alturas. Com isso, é possível ter a percepção delas apenas utilizando os dedos. Ainda, outros dois trabalhos autorais da artista integram a mostra.

A técnica de criar obras com relevo foi elaborada por Lenora enquanto fazia doutorado, mas na época não havia percebido o quão tátil seu trabalho poderia ser. “Houve um fato que me impactou muito na minha adolescência, quando eu conversei sobre obras de arte com uma pessoa que não enxergava. Eu guardei essa conversa e, com o tempo, as coisas que ficaram guardadas foram reaparecendo na minha mente de uma maneira mais elaborada e inconsciente. Eu não sabia exatamente o que eu estava criando, não era uma coisa proposital”, conta. Somente anos mais tarde, durante outra exposição em Blumenau, ao ser questionada se daria acessibilidade para a mostra permitindo que pessoas cegas pudessem visitá-la, Lenora percebeu o que sua criação significava: uma arte para ver com os dedos.

A técnica de criar obras com relevo foi elaborada por Lenora enquanto fazia doutorado. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Além do toque, ainda é possível sentir a obra utilizando uma luva tecnológica que possui sensores de sons e vibrações – criada especialmente para a exposição por meio de uma parceria entre a artista e a empresa de tecnologia ThoughtWorks Creative Technology Consultants. Com um pequeno computador e um sensor na ponta do dedo indicador, a luva informa de que cor é a superfície que está em contato com ela. Os outros dedos ficam livres, para que a pessoa consiga, ao mesmo tempo, sentir as texturas das obras.

Além da proposta de ser acessível para quem não enxerga, a integração entre países diferentes também marca a exposição. Isso está presente, inclusive, na disposição das obras dentro da sala em forma de curva. Os dois trabalhos que estão no início e no fim do semicírculo, um de frente para o outro, são as obras autorais de Lenora – mapas de continentes banhados pelo oceano atlântico, feitos exclusivamente para a exposição. “Eles estão espelhados. Em um deles a África está de dum lado e, no outro a África está do outro lado. Isso porque eu quis representar a Pangeia, quando África e América Latina estavam juntas”, afirma a artista. Segundo ela, os mapas foram feitos com cores complementares, como vermelho e verde, roxo e amarelo, pois esses tons se potencializam. “Assim como as pessoas diferentes entre si também se potencializam”, conclui Lenora.

Entre eles, estão nove das obras traduzidas de artistas com diferentes nacionalidades. Segundo Lenora, elas integram e unem os mapas. Apenas uma das obras está exposta fora da sala, no primeiro nível do salão. ‘A Negra’, de Tarsila do Amaral, abre a exposição. “Ela representou na obra a escrava que a amamentou. Eu decidi traduzir para todo mundo ficar sabendo disso, da história, porque às vezes poucas pessoas sabem. Eu escolhi ela para ser o destaque por essa razão. Para refletir e questionar a questão da integração de pessoas que são ‘diferentes’”, conta. A obra de Tarsila é a única com maior luminosidade e onde, em função disso, a luva não funciona.

As outras obras estão em meio à penumbra pois Lenora queria inverter o comum, fazendo com que pessoas que não possuem deficiência visual se adaptassem a uma realidade que não é a delas. “Eu queria que as pessoas que enxergam tivessem um milésimo da experiência das pessoas que não enxergam. Quis tirar quem enxerga da área de conforto que é enxergar e enxergar na luz”.

O Centro Cultural CEEE Erico Verissimo fica na R. dos Andradas, 1223, no Centro Histórico de Porto Alegre. A visitação acontece de terça a sexta, das 10h às 19h; e aos sábados das, das 11h às 18h.

Foto: Joana Berwanger/Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21

Foto: Joana Berwanger/Sul21