Opinião: Roger Waters veio à nossa província reacionária ensinar que tudo é político
Por Thiago Köche
Estamos vivendo uma onda de conservadorismo no Brasil oriunda do tsunami que começou em outros países. Essa onda tem como objetivo anular a própria política, transformando-a num depósito de ódio e para que assim, políticos oportunistas (que negam a política e se propõem à mesma) surfem nela das mais variadas formas, tais como o falso nacionalismo, a exaustação das Forças Armadas, o fundamentalismo religioso e o conservadorismo social.
Nesta onda de negação da política, uma das estratégias para que se faça dela um campo fértil para retrocessos sociais virem a galope (como a censura), está a afirmação de que certas manifestações não “se misturam” com política. Isso vem de tempos, tomou centralidade no debate quando o apresentador Tiago Leifert afirmou que “evento esportivo não é lugar de manifestação política” após jogadores de futebol americano protestarem contra o presidente Donald Trump.
João Ubaldo Ribeiro, falecido e importante escritor, autor do livro Política: quem manda, por que manda, como manda, nos ensina que “a presença da Política em nossa existência desafia qualquer tentativa de enumeração. Porque tudo pode — e deve, a depender do caso — ser visto sob um ponto de vista político. É impossível que fujamos da Política. E possível, obviamente, que desliguemos a televisão, se nos aparecer algum político dizendo algo que não estamos interessados em ouvir. Isto, porém, não nos torna “apolíticos”, como tanta gente gosta de falar. Torna-nos, sim, indiferentes e, em última análise, ajuda a que o homem que está na televisão consiga o que quer, já que não nos opomos a ele”.
Os shows da turnê Us + Them do inglês Roger Waters pelo Brasil, sempre marcados pelo posicionamento sociopolítico, viraram capas de todos portais devido as vaias misturadas aos aplausos de seus fãs nos concertos, que pude vivenciar nesta terça-feira no Beira-Rio. Manifestando-se contra autoritarismos de Le Pen, Trump, Stalin, Mao Tsé-Tung, Bush e outros, Waters resolveu falar do então candidato à presidência do Brasil Jair Bolsonaro e com isso, angariou diversas reações de apoio e contrariedade – chegando ao ponto de fãs gravarem vídeos saindo no meio do show em São Paulo dizendo: “eu vim para um show de rock, não para um show de levantar bandeira política”.
Daí em diante a insanidade tomou conta das pessoas e instituições brasileiras contra Waters. Com críticas diversas, inclusive do Ministro de Cultura do governo Temer, Sérgio Sá Leitão disse que um dos fundadores do Pink Floyd fez “campanha disfarçada de show”. As fake news, outra onda do momento, vieram afirmando que Waters era beneficiado pela Lei Rouanet e por isso estaria falando mal de Bolsonaro e automaticamente (na mente binária de seus críticos), bem do candidato do PT, Fernando Haddad. É importante dizer que a turnê não foi beneficiada por incentivos fiscais.
O TRE-PR chegou a proibir do ex-vocalista do Pink Floyd de falar sobre Bolsonaro no show de Curitiba até às 22h, nas vésperas das eleições (27/10), e Waters respondeu com sua genialidade habitual, projetando uma mensagem irônica contra Bolsonaro e contra a justiça brasileira faltando 30 segundos para as 22h. De fato, Waters tem identificação com projetos de esquerda e progressistas, tanto que chegou a pedir para visitar o ex-presidente Lula em Curitiba. Mas porque Waters é assim? As pessoas procuram informar-se sobre ele ou apenas querem ouvir suas músicas, quiçá de suas convicções pessoais, impressas tanto em seus discursos como nas suas letras?
Para quem desconhece, Roger Waters tem 75 anos, nasceu no condado de Surrey na Inglaterra. Um dos fundadores, líder conceitual, principal letrista, baixista e vocalista de uma das maiores bandas de todos os tempos, perdeu o pai durante a Segunda Guerra Mundial, nas mãos do fascismo em Anzio (Itália). Seu avô morreu nas mãos do genocídio da Primeira Guerra Mundial durante uma batalha na França. Another Brick on the Wall, Part 2 com o refrão “hey, teacher, leave them kids alone” (hoje muito mal usado por defensores do projeto Escola Sem Partido, projeto que visa tolhir os professores de falar sobre matérias e assuntos de sociologia e política) era uma crítica sobre o sistema educacional inglês de sua época, onde os professores oprimiam os alunos e destacavam fraquezas.
Sir Waters chegou a ganhar os apelido de Sr. Sombrio e “o homem mais triste do rock”. O incansável militante sempre questionou o capitalismo feroz que assola os continentes através de questionamentos filosóficos, existenciais e sociopolíticos. The Wall é uma metáfora para uma parede gigante e interminável que isola de um lado produção feroz do mercado financeiro e separa a humanidade para que possamos viver com dignidade. Animals, cuja capa ilustra um porco (figura recorrente para criticar capitalistas) em homenagem ao A Revolução dos Bichos, de George Orwell, entre duas chaminés de uma grande indústria, fala de preconceito e desigualdade gerados pelo capitalismo, ponto principal de suas músicas icônicas como Pigs e Dogs. O romance do enredo de Animals (afinal para Waters não basta ser “apenas” um álbum, é algo a mais) baseia-se no comunismo porém defendendo um socialismo democrático.
Quem acompanha a carreira dele sabe de suas críticas sociais. Mesmo assim, o Estádio Beira-Rio estava lotado nesta terça-feira (30) para ver um grande espetáculo. O show em si é impressionante. Não é só um grande espetáculo musical e cênico. Marca registrada de suas turnês, um enorme telão transforma os músicos em formigas no palco tão grande. As projeções, as filmagens projetadas mescladas com filmagens dos músicos em performance, as luzes formando um triângulo e a refração das cores em alusão à clássica capa do The Dark Side of the Moon, as chaminés enormes que se levantam atrás do telão e soltam fumaça… de fato, “apenas” mais um show musical vai para outro patamar com tamanho suporte técnico e audiovisual, fazendo o slogan publicitário da turnê de “o maior espetáculo audiovisual do planeta” ser uma verdade. Tudo isso potencializa qualquer coisa ali executada. Inclusive manifestações sociopolíticas.
Não é de hoje que essas manifestações marcam o britânico, mas desde a união de Roger Waters e Syd Barret em 1964 formando a banda Sigma 6 que veio a se tornar o Pink Floyd. Waters sempre imprimiu em suas performances, letras e turnês com perfeição a veia política. Num país tomado pelo retrocesso social e político, ele encontra resistência de seus fãs. Em Porto Alegre, polo do conservadorismo tupiniquim e refletindo o resultado das urnas do último domingo (28), era óbvio que Waters encontraria o que tem sido habitual em seus shows no Brasil: tantas vaias quanto aplausos.
Foi refletido no enorme telão críticas a governos corruptos e autoritários, visando apenas o lucro (vide Trump, alvo predileto de Waters), fala sobre a Palestina, Israel, as polícias militares violentas, sobre a quebra de sigilo de Zuckeberg… todas essas pautas progressistas encontravam vaias. E teve gente que pagou caro para ver seu ídolo e vaiá-lo? Sim. Isso pode ter várias explicações. Pode ser que essas pessoas tenham uma memória afetiva com músicas hits de suas adolescências, apegando-se na musicalidade e não nas letras das canções. Muitas pessoas não procuram ler sobre as letras, os álbuns, as turnês, os pronunciamentos pessoais do músico. Assim sendo, vão para o show, “apenas para curtir a música”, achando que não se mistura com política.
Porém, todas ou quase todas as nossas ações são política. Muitas manifestações são mais políticas do que a própria política tradicional em si, onde poucos integrantes realmente se preocupam em fazer algo para melhorar a vida dos cidadãos. Nas projeções comandadas por Waters, moradores de ruas, favelas, repressões policiais e militares, manifestações do Black Lives Matter, lixões com mulheres e crianças tentando achar algo de valioso lá em meio a abutres, intercaladas com cenas de drones e helicópteros soltando bombas no Oriente Médio (Waters aí dando sentido a teoria do cineasta soviético Eisenstein sobre o poder da edição para dar sentimento à uma sequência cinematográfica, fazendo muitas pessoas chorarem nesse momento).
O ápice da noite foi a participação de crianças da Vila Pinto, do bairro Bom Jesus, um dos bairros mais pobres de Porto Alegre, durante a execução de Another Brick on the Wall, Part 2. No final da música, elas tiraram o macacão icônico do videoclipe da canção e mostraram camisetas com a palavra “Resist” no peito. Todas crianças e a banda erguem o punho em protesto. Tudo fica preto e um enorme “Resist” em vermelho forma-se na tela. A vaia comeu solta, aplausos enlouquecidos e gritos de “ele sim!”, misturados a gritos de “ele não!”, com gente quase se agredindo. Esse é o reflexo dos tempos de acirramento e disputa odiosa que vivemos em nosso país após um racha, não pela disputa política-partidária em si mas pela briga ideológica. De um lado a democracia, a diversidade e a empatia por aqueles que mais precisam das políticas públicas e de outro o preconceito com o diferente (negro, índio, mulher, LGBT, refugiado), o ódio e a intolerância.
Ao final do espetáculo, a chuva e os raios tomaram conta do céu como prenúncio de tempos difíceis. Waters não deve conhecer a carreira de Mario Quintana, mas se identificaria com o quintanar “Todos esses que aí estão atravancando meu caminho, Eles passarão… Eu passarinho!”. Esse mau tempo estão atravancando o caminho daqueles que querem um mundo preocupado com as pessoas e suas diferenças de classe, cor, etnia, origem, orientação sexual etc. Mas a resistência que Waters sugere com as crianças da Bom Jesus – e o próprio artista – serão para sempre passarinhos. E essa corja de canalhas que referendam o ódio, nas urnas ou nas vaias, passarão e serão engolidos pela latrina da história, que é seu devido lugar.
Não posso encerrar esse texto a não ser com um trecho de Eclipse, executada ontem. A letra, direta ou indiretamente, mostra que tudo é político.
All that you touch
And all that you see
All that you taste
All you feel
And all that you love
And all that you hate
All you distrust
All you save
And all that you give
And all that you deal
And all that you buy
Beg, borrow or steal
And all you create
And all you destroy
And all that you do
And all that you say
And all that you eat
And everyone you meet (everyone you meet)
And all that you slight
And everyone you fight
And all that is now
And all that is gone
And all that’s to come
And everything under the sun is in tune
But the sun is eclipsed by the moon