Hoje (14), a Ospa traz “A Guerra dos Românticos” para o Salão de Atos da Ufrgs

Milton Ribeiro

Hoje à noite, às 20h30, a Ospa estará apresentando (mais detalhes, aqui) duas importantes obras do romantismo alemão: o Concerto Nº 1 para Piano e Orquestra de Johannes Brahms e a Sinfonia Nº 4, “Romântica”, de Anton Bruckner. Os dois compositores não poderiam ser mais diferentes. Bruckner jamais militou por causa alguma, já Brahms era praticamente o chefe da ala que combatia Wagner e seus seguidores, entre os quais estava o tímido Bruckner. Brahms também comparou a música de Bruckner a um dinossauro agonizante.

Brahms era um intelectual, Bruckner era religioso a um nível doentio. Brahms era decidido e cheio de opinião, Bruckner era dubitativo e hesitante. Suas sinfonias têm muitas edições e revisões diferentes entre si. Até hoje os regentes escolhem uma versão ou outra. Não há versões definitivas, pois ele não parava de revisá-las mesmo após publicadas. Pelas mesmas razões, entre as Sinfonias de Nº 1  e 2, ele escreveu uma Sinfonia “que não contava” — era uma espécie de teste — e que acabou ganhando o Nº 0 (zero). Ela só veio a público após mais revisões e revisões. Acreditamos que Bruckner seja o único compositor que tenha uma Sinfonia Zero.

As silhuetas de Bruckner e Brahms em obra de Otto Bohler

Mas vamos às fofocas e aos paradoxos, que é o que interessa.

A “Guerra dos Românticos” é um termo usado por alguns historiadores de música para descrever o cisma estético entre importantes compositores alemães da segunda metade do século XIX. A estrutura musical, os limites da harmonia cromática e a discussão “Música de Programa” versus “Música Absoluta” foram as principais áreas de contenta.

Os lados  opostos cristalizaram-se durante a década de 1850. O círculo conservador foi centrado em Johannes Brahms, Joseph Joachim, Clara Schumann e no Conservatório de Leipzig, fundado por Felix Mendelssohn. Do outro lado, estava Richard Wagner, Franz Liszt e os membros da chamada Nova Escola Alemã. A controvérsia deu-se mais na Europa central, mas músicos da França, Itália e Rússia foram também envolvidos. Estranhamente, os compositores de ambos os lados viam em Beethoven seu herói espiritual e artístico. Os conservadores viam-no como um pico insuperável, os progressistas como o revolucionário que recomeçou a música.

O grupo conservador defendia o legado artístico de Robert Schumann, marido de Clara, que morreu em 1856. Robert Schumann nunca foi um admirador de Liszt. No entanto, mantinha relações de amizade com ele e com a vanguarda emergente de românticos radicais, bem como com conservadores musicais como Mendelssohn. Schumann elogiou os concertos de Liszt em 1840, no entanto, quando a lisztomania varreu a Europa depois de 1842, ele e Clara passaram a criticá-lo abertamente, tornando-se hostis a sua música. Aqui, deu -se a primeira cizânia.

O jovem Brahms era amicíssimo dos Schumann e aderiu à causa. Joachim, amigo de Clara e Brahms, se juntou a eles na oposição a Liszt e à Nova Escola Alemã. A relação pessoal de Brahms com Liszt foi limitada a uma única visita a Weimar em 1853, quando apresentou algumas de suas composições a um grupo que incluía Liszt. Depois de Liszt ter permanecido indiferente ao trabalho de Brahms, ele interpretou uma Sonata de Piano de sua autoria. Em resposta, Brahms igualmente não ficou impressionado nem com a música de Liszt, nem com a maior parte do restante dos compositores da Escola Nova Alemã. A exceção foi Wagner. Mais de uma vez disse a seus amigos: “Eu sou o melhor dos wagnerianos”. Joachim, como Brahms , respeitou a música de Wagner; no entanto, ambos também concordavam que as ideias políticas de Wagner eram muito perigosas.

Embora o compositor austríaco Anton Bruckner não tenha participado do debate entre conservadores e progressistas, suas sinfonias foram vistas como parte do último grupo, devido às suas harmonias avançadas, orquestrações maciças e movimentos longos: o dinossauro. Também seu amor a Wagner — Bruckner dedicou sua Terceira Sinfonia a ele — ajudou a cimentar essa impressão.

O ponto central de desacordo entre esses dois grupos de músicos era entre formas musicais tradicionais e novas. Liszt e seu círculo desejavam novos estilos de escrita musical e formas que combinariam a música com idéias narrativas e pictóricas.  Para este fim, e com o lema “O vinho novo exige novas garrafas” em mente, Liszt desenvolveu o poema sinfônico. Já o grupo conservador defendia as formas utilizadas pelos mestres clássicos, adotadas no início do século XIX.

A validade da música de programa também foi um ponto de disputa. Em seu livro de 1854, Von Musikalisch-Schönen, o brahmsiano Eduard Hanslick afirmou que a música não representava nada específico além de si. Poderiam sugerir impressões realistas à maneira de Hector Berlioz, bem como sentimentos, como os representados pelas rubricas do movimento na partitura da Sexta Sinfonia de Beethoven, mas nada mais do que isso. Depois, Hanslick mudou de opinião… Mas antes, o extremismo das posições de wagnerianos e brahmsianos levou Bruckner a suspeitar que Brahms estaria por trás dos ataques desferidos por Hanslick. Consta que Bruckner teria chegado a pedir ao imperador austríaco que fizesse com que Hanslick deixasse de escrever coisas desagradáveis sobre ele.

A “guerra” foi realizada através de composições, palavras e até mesmo em concertos. Mas havia sempre paradoxos.  Na estreia do primeiro Concerto para  Piano de Brahms em Leipzig — Concerto que a Ospa interpretará hoje –, houve uma inversão. O concerto, que era sua primeira peça orquestral, foi odiada pelos críticos conservadores, enquanto que os apoiadores da Nova Escola Alemã aprovaram.

Reputações estavam em jogo e os partidários de um lado ou outro procuraram envergonhar seus adversários publicamente. A escola de Weimar realizou uma celebração no local de nascimento de Schumann, Zwickau, sem  convidar membros da oposição (desconvidando a viúva Clara Schumann). Eles consideraram ridícula a obediência de Brahms aos formatos pré-estabelecidos, enquanto este dizia que Liszt não possuía forma. Os lisztianos viam mais  conteúdo musical em seu ídolo, quando confrontado com obras que reutilizam formas antigas “sem qualquer sentimento”. Na verdade, digamos que os radicais eram descabeladamente românticos.

Wagner atacou o lado conservador em seu ensaio Sobre a Regência, quando os retratou como “uma sociedade de temperança musical que esperava um Messias”.

Mais paradoxos? Em 1859, Liszt estava cada vez mais interessado em escrever música da igreja e abraçar os ideais conservadores da Igreja Católica. Ele elogiou Meyerbeer, um compositor judeu desprezado tanto pela Nova Escola Alemã quanto pelo antissemita Wagner.

Embora a hostilidade real entre os dois lados fosse diminuir ao longo dos anos, a “guerra” era uma clara demarcação entre o que era visto como “música clássica” e “música moderna”, categorias que ainda persistem hoje com outras obras.

Quanto aos heróis do concerto de hoje, Bruckner era devoto religioso e de Wagner. Ele queria a aprovação de seu mestre. Já Brahms era anti-Wagner. Então Brahms era conservador, enquanto Bruckner era vanguardista?

Pois, o incrível é que nossa época acha o contrário. A partir do ensaio Brahms, o Progressista, de Arnold Schoenberg, Brahms ganhou fama de vanguardista. E é. Tanto quanto o igualmente grande Bruckner.

Confira hoje à noite o clássico e “obediente” Brahms e o wagneriano e “barulhento” Bruckner, ambos brilhantes em seus estilos.