Cena underground se despede de um seus maiores ícones: ‘Ele é o rock gaúcho’
Luís Eduardo Gomes
O rock gaúcho se despediu de uma de suas figuras mais icônicas e irreverentes nesta terça-feira (22). Flávio Basso, mais conhecido como Júpiter Maçã ou Jupiter Apple, foi velado pela manhã no Teatro Renascença, em uma cerimônia marcada pela presença de muitos fãs e amigos da cena musical e boêmia de Porto Alegre, das quais ele era uma das principais figuras desde a segunda metade da década de 1980.
Basso faleceu na noite se segunda-feira após uma queda no banheiro de sua casa, aos 47 anos. A causa da morte foi considerada como falência múltipla dos órgãos. Ao longo de 30 anos de carreira, ele marcou época nas bandas TNT, da qual fez parte em seu início, e Cascavelletes. Posteriormente, teve uma profícua carreira solo como Júpiter Maçã e Júpiter Apple.
O músico Frank Jorge, que tocou com ele na banca Cascavelletes, destaca que Basso era um artista de grande capacidade criativa e potencial musical. “Era um cara de muitas ideias, um cara que tinha um conhecimento e um acervo musical muito grande e sabia criar sua própria linguagem, sua própria ideia de sequencias de acordes, criar canções, criar linhas de baixo”, afirma. “Um potencial tão grande que gerava até essa dificuldade dele saber se encaixar de que forma na sociedade com dia a dia pré-determinado”.
Apesar de chegar a assinar com grandes gravadoras no período de bandas, Basso, já como Júpiter Maçã, teve uma relevante carreira ‘underground’, às margens das principais rádios e televisões locais e nacionais. Jorge avalia que o trabalho de Basso esteve à frente do seu tempo. “Não é exagero dizer que as novas gerações vão levar um tempo para assimilar tudo que ele concretizou nessas bandas”, diz.
Mesmo assim, o radialista Ronaldo Zirkel, que apresenta o programa de rock gaúcho Acorde RS na rádio online Radicci FM, avalia que Basso é o nome mais influente da história do rock gaúcho. “Para mim, o rock gaúcho não tem significado se não tiver Flávio Basso no meio, tanto carreira solo, tanto banda, quanto pessoa, compositor”, afirma. “Ele é o rock gaúcho. Se tu for analisar hoje, o rock gaúcho não conseguiria estar desvinculado do nome Flávio Basso”.
Além da parte musical, Basso também marcou época como uma das figuras mais irreverentes, diferenciadas e polêmicas da cena musical gaúcha. “Hoje em dia todo mundo é retrô, tudo é vintage. Têm lugares que a gurizada se veste de Flávio Basso. Naquela época, ele era o único. Tudo era discoteca, na TV, na novela, na rua e em toda parte, e ele era um mega freak. As pessoas pensavam: ‘De que planeta saiu esse cara?'”, diz o músico Márcio Petracco, que, ao lado de Basso, fez parte da formação original da banda TNT.
A irreverência também sempre esteve presente nas letras de suas canções, com títulos como “Um Lugar do Caralho”, “Miss Lexotan”, “A Marchinha Psicótica de Dr.Soup”, etc. Uma de suas passagens mais curiosas hoje é eternizada no YouTube, quando, com a banda Cascavelletes, cantou a música “Eu quis comer você” em um programa infantil apresentado por Angélica, em 1987.
Para Petracco, sem a figura de Basso, o rock gaúcho teria sido diferente e, provavelmente, menos rico.
“Para mim ele inventou esse troço todo. Teve coisas que vieram antes, coisas que aconteceram paralelamente, mas não dá para apontar uma pessoa que teve mais importância nessa função toda do que ele”.
‘Fazia as coisas do jeito dele’
Além da irreverência e de uma personalidade única, Basso é lembrado como alguém que preferia fazer as coisas de seu jeito a seguir padrões impostos por gravadoras. Por uma divergência, ele deixou a banda TNT logo após assinar com a gravadora americana RCA e fundou a banda Cascavelletes.
“Naquela época, uma banda de garagem de Porto Alegre assinar com gravadora multinacional era como tu ganhar sozinho na Mega-Sena. Mas a gravadora começou a forçar a barra para cá e para lá e ele disse o seguinte: ‘Olha só, fica com esse bilhete premiado que eu vou ali jogar de novo na loteria’. Foi isso que ele fez. E os Cascavelettes foram tão grandes quanto o TNT, senão maiores”, relembra Petracco.
Petracco, que curiosamente nasceu no mesmo dia e no mesmo hospital que Basso, ainda relembrou os primeiros momentos de sua amizade com o músico, que começou ainda na adolescência, em 1984. “Quando a gente começou a tocar junto, ele não sabia como funcionava um baixo e eu tinha um contrabaixo e eu não sabia como funcionava uma alavanca de guitarra. Nós rolamos o som e ele disse. ‘Bah, ficou que nem nos discos’. Quando terminou esse nosso primeiro ensaio, ele foi guardar a guitarra, eu vi uma alavanca dentro do case dele e perguntei: ‘o que é isso?’. Ele disse: ‘É isso aqui’. Botou a alavanca dentro da guitarra e usou. Eu dissse: ‘Pô, ninguém nos segura, bixo'”.
Legado segue com os fãs
O velório de Basso também foi marcado pela presença de fãs, incluindo muitos jovens que sequer tiveram a oportunidade de ver Basso se apresentar ao vivo. Um deles era Jonathan de Moura Soares, 17 anos, que prestou sua homenagem vestindo uma camiseta da banda Cascavelettes.
“Eu conheci o Júpiter através do meu pai, que me apresentou bandas gaúchas como TNT e Cascavelletes. Eu me identifiquei muito com a figura dele. Um caro bem vivo, bem loucão. Curtia bastante o som dele. Inclusive, por causa dele e de outras bandas eu comecei a tocar violão e tudo mais”, afirmou.
Jonathan diz que sonhava em apresentar suas músicas para Basso. Apesar de não ter a oportunidade de realizar esse sonho, ele diz que continuará influenciando amigos a conhecer o trabalho do músico. “Se pegar 30 amigos meus, acho que dois conheciam Júpiter antes de eu mostrar para eles. Agora, uma galerinha conhece”, diz. “Assim como passou da geração do meu pai para minha, espero que meus filhos também cresçam escutando Júpiter”, complementa.
Também com uma camiseta em homenagem, mas com referência à carreira solo de Júpiter Maçã, o músico e fã Stevan Zanirati lembrou de Basso como uma de suas principais influências e da última vez que o encontrou em Porto Alegre. “Eu faço minhas músicas, minhas autorias, do qual tem total influência de Júpiter Apple. A última vez que encontrei ele foi na Casa de Cultura Mário Quintana. Apresentei uma das minhas composições. E ele, bem assim calminho, disse: ‘muito bom, man’. Aquilo foi emocionante para mim”, conta, que diz sempre fazer em seus show um cover de “Um Lugar do Caralho”.
O corpo de Basso é enterrado nesta terça, às 18h, no cemitério João XXIII, em Porto Alegre.