Por Bernardo Ribeiro
Informação não é conhecimento, conhecimento não é sabedoria, sabedoria não é verdade, verdade não é beleza, beleza não é amor, amor não é música. Música é melhor.
Frank Zappa, JOE’S GARAGE, 1979
Há 24 anos, em 4 de dezembro de 1993, morria um dos compositores mais controversos do século XX. Frank Zappa nasceu em Baltimore (Maryland, EUA) no ano de 1940, porém cresceu bem mais a oeste, na California. Segundo sua autobiografia — co-escrita com Peter Occhiogrosso –, The Real Frank Zappa Book (Simon & Schuster, inédito no Brasil), Zappa considerava-se, antes de músico, um compositor: “Composição é um processo de organização muito próximo da arquitetura. Quando você consegue compreender o que é este processo organizacional, você pode ser um ‘compositor’ em qualquer meio que desejar.” Como ele mesmo sugere na afirmativa, seu trabalho de composição não se resumia à música somente; devem ser somados a ela seus filmes de baixo orçamento, vídeos de shows, entrevistas e sua autobiografia para quiçá termos ideia das proporções de sua produção.
“Quando jovem, eu sentava por algo como dezesseis horas consecutivas, debruçado sobre o papel a desenhar pequenos pontos negros. Nenhuma outra atividade me tirava da frente do papel, talvez comida e café, mas, fora isso, nada me impedia de passar semanas e meses sem fim escrevendo música.” O primeiro LP que Zappa comprou, aos quatorze anos, foi The Complete Work of Edgar Varèse e o segundo foi A Sagração da Primavera de Igor Stravinsky. Até meados de sua terceira década de vida, Frank não ouvia R&B (Rhythm and blues), tendo passado a tocá-lo para conseguir viver e, quem sabe, ganhar suficiente dinheiro para seus projetos sinfônicos, onde ele normalmente perdia tudo. Zappa afirmava que graças à músicas que lhe foram rentáveis, como Dinah-Moe Humm, Don’t Eat The Yellow Snow e Titties & Beer, foi possível juntar o valor que acabou sendo gasto nas músicas lançadas no disco Zappa – London Symphony Orchestra Volumes I & II, anos mais tarde.
É claro que desde a adolescência, Frank tinha uma percepção musical diferenciada que, se não o levaria a ser um grande virtuose instrumental, levou-o a explorar as grandes complexidades estruturais. Por exemplo, desde o primeiro disco, Zappa trazia-nos citações implícitas e explícitas de Stravinsky e Varèse. A consequência lógica era a de que suas composições fossem bastante difíceis de se tocar, inclusive as mais populares. Tal fato teve sua curiosa culminância quando ele proibiu o consumo de drogas entre seus músicos. Zappa, diferentemente da fama de louco, não era adepto das drogas — na verdade ele as abominava e demitia os músicos de seu grupo que fossem usuários, pois suas músicas já eram demasiadamente complicadas para serem tocadas mesmo sobriamente e ele não acreditava que “as drogas tornassem os músicos melhores”, como alguns pensam.
Seus maiores interesses no que concerne à música eram suas composições orquestrais e para suas big bands — o tour de 1988 tinha uma banda com três guitarras, baixo, bateria, percussão incluindo marimba e sinos tubulares, teclado, trompete, flugelhorn, trombone, sax alto, soprano, tenor e dois barítonos sendo tocado por doze músicos.
Em sua música de caráter mais popular, Zappa apostou muito no humor, estabelecendo-o como projeto ou, em outras palavras, como seu objetivo. Criando objetos, sejam eles personagens, sons específicos, trechos de diálogos ou a própria melodia, estabeleceu uma ligação projeto/objeto onde os objetos surgem livremente em músicas diversas vezes ao longo de sua carreira. Em suas ironias, Zappa não poupava ninguém — mulheres (Dinah-Moe Humm, Valley girl), gays (Punky’s whips, I’m so gay, Keep it greasey), igreja (Heavenly bank account, Jesus think’s you’re jerk) e Deus juntamente acompanhado de toda a raça humana (Dumb all over). Esta é uma importante faceta de sua música: a fascinante acidez de letras corrosivas e engraçadíssimas. “Qualquer um que queira ser religioso, pode sê-lo, eu apoio seu direito a tomar esta escolha. Entretanto, eu apreciaria se você exibisse mais respeito pelo direito das pessoas que não querem compartilhar seu dogma ou necrodestinação.”
Como devem ter percebido pela primeira parte, ele era um workaholic. Durante seus quase 53 anos de vida, lançou 63 discos oficiais. Gravou praticamente tudo o que produziu, mas até hoje são lançadas gravações de shows. Até agora, seu catálogo atinge a marca de 91 CDs, 28 póstumos.
Um breve e curioso relato de fato ocorrido no alvorecer da obra zappeana: no ano de 1964, em Pomona (California), Ray Collins, um cantor de uma modesta banda de bar, The Soul Giants, chamou Frank para substituir o guitarrista de sua banda, o qual ele havia agredido. Zappa acabou entrando para o que viria a ser sua primeira banda e teve a idéia de apresentar músicas originais suas em vez de continuar fazendo os covers de Collins. A banda, exceto Ray Collins, que acabou saindo, apoiou sua decisão, esperando arranjar um contrato com uma gravadora. Era o início do The Mothers, primeiro grupo do compositor. Contrato com gravadora? No início não foi bem o que aconteceu. Como suas músicas não eram conhecidas e nem dançantes, ninguém as dançava, é claro. Logo, ninguém bebia e, por conseguinte, a banda passava fome. Meses depois, Zappa conheceu Mark Cheka, um artista pop de Nova Iorque, conseguindo arrastá-lo até um show do estranho e endividado Mothers. Talvez compadecido com o esforço do jovem Zappa ou talvez impressionado com a banda, Mark Cheka o apresentou a Herb Cohen, que tornou-se o empresário da banda. Com isso, o Mothers saiu da linha da fome chegando enfim à pobreza. Em 1966, eles conseguiram seu primeiro contrato com uma gravadora, a MGM, e também o primeiro dos seus atritos com as mesmas: após todo LP Freak Out! ser gravado, veio a necessidade de trocar de nome da banda, pois nenhum DJ tocaria uma música de alguém chamado The Mothers (alusão óbvia a mother fuckers). Deste modo e a contragosto, a banda foi renomeada para The Mothers of Invention. Zappa gravou meia dúzia de discos com o Mothers e depois passou a adotar a rotatividade entre os músicos de suas bandas.
Em 1990, ele recebeu um diagnóstico de câncer de próstata terminal. A doença se desenvolvia há dez anos e naquela altura nenhuma operação era mais possível. Depois do diagnóstico, Zappa devotou a maior parte da sua energia principalmente a trabalhos orquestrais modernos e no Synclavier. Em 1993, ele completou Civilization, Phaze III pouco antes de sua morte. Frank Zappa morreu em sua casa de Laurel Canyon junto de sua família. Em uma cerimônia privada, no dia seguinte, Zappa foi enterrado em um túmulo não marcado no Westwood Village Memorial Park Cemetery, em Westwood, Los Angeles. Na segunda-feira, 6 de dezembro, a sua família anunciou publicamente que o “compositor Frank Zappa foi para a sua última turnê pouco antes das 18h de sábado”.
Zappa ganhou aclamação crítica em vida e depois de sua morte. O Álbum Guia da Rolling Stone de 2004 ensina: “Frank Zappa tocava virtualmente todo o tipo de música – seja disfarçado como um roqueiro sátiro, um fusionista de jazz-rock, um guitarrista virtuoso, mago da eletrônica ou inovador da orquestra, o seu gênio excêntrico era inegável”. Não foi tão famoso em seu país quanto era na escandinávia e em alguns países do leste europeu. Por muitos anos, tudo que se conhecia sobre a sua pessoa era, em grande parte, oriundo de entrevistas. Suas músicas raramente tocavam em rádios e seus discos não eram encontrados facilmente. No final dos anos 70, já independente de gravadoras, criou um serviço telefônico para fazer a entrega de seus trabalhos nos EUA. Mas é cultuado de forma incondicional por muita gente além do autor deste artigo de fã. R.I.P., Frank!
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Pensando em quem não conhece Zappa e que, por ventura, tenham se interessado por ele, resolvi criar este parágrafo para nortear vossos descobrimentos. Dweezil Zappa, um de seus filhos, indicou em uma entrevista que os dois melhores discos para começar a ouvir a música de seu pai são Over-nite Sensation (1973) e Apostrophe (1974). De fato são álbuns facilmente digeríveis, difíceis para alguém que goste de rock desgostar. Grande parte das letras é satírica, mas se quiserem ouvir o álbum com o menor pH, creio que este seria o You Are What You Is (1981). Dos álbuns de caráter mais jazzístico, Waka/Jawaka (1972) e The Grand Wazoo (1972) sobressaem-se. As obras sinfônicas estão em Yellow Shark (1993) , no citado Zappa – London Symphony Orchestra (Volume I em 1983 e II em 1987) e Boulez conducts Zappa: The Perfect Stranger (1984). E, para aqueles que preferirem baixar um único álbum que sintetize sua música em um só trabalho, há o gigantesco Läther, disco quádruplo. Além desses nomes, há diversos outros álbuns fascinantes, One Size Fits All, Zoot Allures, Absolutely Free, Hot Rats e mais uma meia dúzia que deixo para que vocês mesmos descubram.
F Ramos diz
Grandioso Zappa. Fim dos anos 70 e até os 2000 tocava eventualmente na rádio Ipanema fm de Porto Alegre.
josé beltrame diz
Zappa foi o músico que pela primeira vez elevou o rock à categoria de música para adultos. E foi o verdadeiro fundador da corrente jazz-rock fusion, antes do Bitches Brew de Miles Davis (1969). Seus discos de meados dos anos ’60 já tinham longas viagens instrumentais cheias de improvisos.
CláudioE diz
Esse veio ao mundo pra dizer algo significativo e com certeza disse e fez, começar a gostar Frank Zappa não é fácil, pois quase tudo que ele fez e de difícil deglutição, mas é um caminho sem volta, não é atoa que grandes músicos como Adrian Belew, George Duke, Steve Vai, Jean Luc Ponty, Scott Thunes entre outros tantos talentosos contemporâneos deles faziam de tudo para fazer parte de sua banda.
João Batanolli diz
Em Criciuma, SC o gênio por ocasião de sua passagem, mereceu uma tarde inteira de homenagem com textos, biografias e muita música de sua autoria em programa da Rádio Eldorado AM apresentado por mim João Batanolli e nesse dia apoiado pelo saudoso João Flávio Ribeiro. Desde o Apostrophe e depois conhecendo parte de sua obra nunca me intimidei em dizer que se tratava do músico mais completo do século 20. Pode ser palavra de fã. Mas tá valendo..m