A variedade poética em “a máquina de carregar nadas”
Leonardo Antunes (*)
Matheus Guménin Barreto (Cuiabá, 1992), mestrando em Letras pela USP e tradutor de Brecht e Bachmann, acaba de lançar seu quarto livro de poemas, a máquina de carregar nadas (7Letras, 2017), em que nos apresenta um admirável portfólio poético, testemunho de sensibilidade e variegada técnica no trato com a linguagem.
O livro se estrutura em três partes, constituindo um percurso estilístico que se inicia com uma estética clássica, passa por uma poética modernista e termina com exercícios de vanguarda contemporânea. Nesse percurso, passamos de uma subjetividade autocentrada que se desloca, na segunda parte, para um contato com o outro e com o horror que há no mundo. Disso, resulta uma crise, localizada na terceira parte e manifesta num esfacelamento da própria forma poética, que, logo depois, tenta se reestruturar em uma linguagem estética para nossos dias.
Da primeira parte do livro, note-se o poema abaixo, “CANTO APAZIGUADO”:
O que sobra das mãos são as sombras dos gestos
que, já feitos, nos jazem nas mãos sepultados.
O que sobra de olhares: o breve relance
que, de breve, se perde entre o feito e o lembrado.
O que resta de risos são luzes de dentes
entrevistos por entre a cortina do lábio.
O que resta da vida é a vida que fica
e ficando é que parte ao eterno adiado.
O processo notado acima, de buscar o essencial da experiência de mundo, é um dos motes principais do livro de Barreto. Esse tópos atinge sua maturação na segunda parte do livro, como se percebe no poema “PRIMEIRO”, reproduzido a seguir:
O toque mesmo nas coisas
para lembrar as mãos da
arquitetura limpa daquilo
que o mundo gestou.
A mão limpa, cartesiana, reta
pelas coisas
para tirar o pó sobre os nomes
sol, xícara, casca, ladrilho, pêssego, miséria
e tocar outra vez
como no Dia Primeiro
algo dos nomes
que vibre.
Esse segundo movimento, da parte central do livro, a meu ver é o mais maduro dos três. Ali, encontram-se alguns dos poemas mais interessantes do livro, como essa variação de um tema clássico da poética grega (“Para os terrestres, de tudo, o melhor é jamais ter nascido”, v. 425 do Corpus Thegonideum), no poema “O CANTO”, a partir de uma estética modernista:
[Quisera não nascer homem
ou, melhor, não ter nascido,
se ser é se perder sempre
e nascer é nunca ter sido]
Olhai o galho à janela.
É duro e de morrer não nasce
e sem nascer e sem morrer deita
[à eternidade
a face.
Olha o gato esquecido de nascer.
Olha o cão olha o peixe olha a ara-
nha.
Esquecidos de nascer
[nascem
e perduram no tempo comprido.
Quisera não nascer homem
[ou, melhor, não ter nascido,
se ser é se perder sempre
e nascer é não ter existido]
A terceira parte do livro, por sua vez, traz poemas bastante experimentais, como um que se resume a pautas musicais com uma grave nota “Sol” repetida por algumas páginas, como resultado do esfacelamento da linguagem durante o percurso de contato do eu com o mundo.
No todo, perdura no livro de Barreto uma extrema sensibilidade em lidar com as coisas cotidianas e delas extrair uma experiência que nos move. Mesmo em poemas minimalistas, como são muitos dos da terceira parte, o poeta é capaz de prender nossa atenção com alguma imagem construída com concisa precisão, como a do poema abaixo, sem título:
raia a navalha do sol
límpida, ascética, dura
Com a apresentação dessa variedade de estilos e tendências, todas perpassadas por uma voz de arguta sensibilidade, Barreto demonstra maturidade poética, deixando-nos com a certeza de que possui amplitude técnica para produzir poesia de alta complexidade formal em qualquer estilo em que decidir se experimentar.
(*) Leonardo Antunes é poeta, tradutor e professor de Língua e Literatura Grega na UFRGS.