Os livros premiados com o Jabuti 2016: “Flores, votos e balas”
Na última sexta-feira, dia 18, a Câmara Brasileira do Livro divulgou os vencedores do Prêmio Jabuti 2016, um dos prêmios literários mais importantes do país. Para você conhecer mais sobre as obras, o Blog da Companhia das Letras vai apresentar cada um dos livros e seus autores, começando com Flores, votos e balas, livro de Angela Alonso premiado com o primeiro lugar na categoria Ciências Humanas.
Angela Alonso é professora do Departamento de Sociologia da USP e pesquisadora do Cebrap, uma insitituição de pesquisa de sociologia, política, filosofia, economia, antropologia e demografia que se dedica à analise da realidade social brasileira. Antes de Flores, votos e balas, a autra também lançou pela Companhia das Letras Joaquim Nabuco (2007), volume que faz parte da coleção Perfis Brasileiros, onde traçou um retrato minucioso dos dilemas pessoais e embates públicos do pensador e militante abolicionista.
Flores, votos e balas vai muito além de Joaquim Nabuco ao mostrar como o movimento abolicionista surgiu e atuou no Brasil. Joaquim Nabuco atribuiu a libertação dos escravos à magnanimidade da casa imperial. Porém, no centenário da Lei Áurea, em 1988, estudiosos e ativistas do movimento negro contestaram essa versão e ressaltaram a resistência dos cativos, operando apenas uma inversão de sinal: em vez da liderança da dinastia, o protagonismo dos escravos; em vez da princesa Isabel, Zumbi. Esse deslocamento deixou à sombra um fenômeno que não foi nem obra de escravos, nem graça da princesa: o movimento pela abolição da escravidão. Flores, votos e balas conta essa história reconstruindo a trajetória da rede de ativistas, associações e manifestações públicas antiescravistas que, a exemplo de outros países, conformou um movimento social nacional — o primeiro no Brasil do gênero.
No livro, Angela Alonso mostra como o movimento elegeu retóricas, estratégias e arenas, operando sucessivamente com flores (no espaço público), votos (na esfera político-institucional) e balas (na clandestinidade), num jogo que se estendeu por duas décadas, de 1868 a 1888.
Tudo isso é narrado por meio da trajetória de ativistas nacionais decisivos para o desfecho da empreitada, como André Rebouças, Abílio Borges, Luís Gama, José do Patrocínio e Joaquim Nabuco — três deles negros.
Leia um trecho de Flores, votos e balas.
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Certa vez, André Rebouças custou tanto a conseguir um teatro que os aceitasse que, ao achá-lo, tivera de varrer ele mesmo o recinto, de par com José do Patrocínio, enquanto o público esperava do lado de fora. Dois abolicionistas negros fazendo serviço de escravos. Em 10 de agosto de 1886 não precisou tanto; era improvável que capangas escravistas perturbassem o espetáculo, pois havia uma prima-dona.
Ao chegar ao Brasil em maio, a soprano russa Nadina Bulicioff nem suspeitava de seu papel naquela noite, no Teatro Lírico do Rio de Janeiro. Viera como membro de uma companhia italiana — arrastaram-na o ofício e a paixão pelo jovem Arturo Toscanini. No périplo pelo país, encarnou Tosca eGiaconda e conheceu a mobilização abolicionista, que arrebanhava artistas. A cantante, cuja pátria mantivera a servidão até pouco antes, enterneceu-se tanto que, quando admiradores a quiseram homenagear com diamantes, rogou que usassem o montante para alforriar escravos.
A Confederação Abolicionista, de Rebouças, agarrou a oportunidade. Não era a primeira vez. Desde o início da campanha, em 1868, os abolicionistas recorriam às artes, promoviam cerimônias de persuasão da opinião pública, criavam associações e buscavam aliados fora do país, articulando uma rede de sustentação que incluía França, Espanha, Estados Unidos e Inglaterra. Envolveram também a russa, promovida a sócia benemérita da Confederação. Assim foi que o espetáculo no Teatro Lírico virou manifestação antiescravista.
O sonho de Rebouças era encenar O escravo, que encomendara a Carlos Gomes em 1884, mas o maestro não aprontou a obra a tempo. Foi preciso pinçar no repertório lírico outra ópera que exprimisse a acepção política do ato. Bulicioff encarnaria Aida. Escolha estratégica, pois a obra do popular Verdi atraía multidões e trazia tema alusivo: a moça-título era filha do rei da Etiópia, confinada ao cativeiro no antigo Egito.
Ao pisar no tablado, casa cheia, Bulicioff viu caírem a seus pés as flores que o movimento abolicionista usava como símbolo. Ao fim do primeiro ato, a plateia calou-a com palmas; as manifestações cresceram no segundo e galgaram o clímax na ária de arremate do terceiro. Nessa parte da história, Aida foge do cativeiro, liberdade representada com o acender das novíssimas luzes elétricas.
Foi a deixa para José do Patrocínio, acompanhado pela Banda dos Meninos Desvalidos, subir ao palco. Trazia consigo seis escravizadas, como martelavam os abolicionistas, vítimas de uma instituição imoral, injusta, arcaica. As moças trajavam branco, ao passo que Bulicioff vestia roupas de uma escrava dos faraós, assim igualadas. A banda tocou o Hino Nacional. A russa, então, arrebentou suas algemas cenográficas e, diante do público, que de pé agitava lenços, entregou-lhes cartas de liberdade. Abraçou e beijou cada uma das mulheres que, ante os olhos dos espectadores, se metamorfosearam de escravas em livres. Sete Aidas. Choraram elas e o público, em delírio. Houve palmas e vivas, lançaram-se flores, soltaram-se pombos.