Os dez melhores livros de 2017
Milton Ribeiro
Listas são irritantes, impossível concordar com elas. Elas nos decepcionam pela falta de alguma coisa ou pela presença de outras, mas é difícil não dar uma boa examinada.
Convidamos seis especialistas para que nos elaborassem cada um sua lista dos melhores livros de 2017. Solicitamos apenas o título do livro, o autor e uma justificativa curta de uma a sete linhas, sem muito rigor. Permitimos também os clássicos, desde que reeditados neste ano.
Eles citaram citados 49 livros, sendo que apenas 5 deles foram votados duas vezes. O quinteto foi colocado no início de nossa lista de dez. Os outros cinco foram pinçados dentre os restantes após a leitura de diversas resenhas encontradas na rede.
Ao final, colocamos as outras obras citadas. É uma material precioso demais para ser perdido.
Nossos eleitores foram, por ordem alfabética, o blogueiro Alexandre Kovacs, do Mundo de K; Carlos André Moreira, jornalista, escritor e crítico literário de Zero Hora e do blog Mundo Livro; o escritor e blogueiro Charlles Campos, que possui blog homônimo; o tradutor e escritor Daniel Dago; o escritor Gustavo Melo Czekster; e o jornalista, escritor e crítico Luiz Gonzaga Lopes, do Correio do Povo e editor do Caderno de Sábado, do mesmo jornal.
Vamos à lista dos dez:
~ 1 ~
Manual da Faxineira, de Lucia Berlin (Companhia das Letras)
Contos dilacerantes em que melancolia e sarcasmo dão as mãos e constroem gemas da narrativa curta. Lançando foco sobre as almas solitárias que foram uma verdadeira obsessão da literatura do século 20, Berlin tem um olhar menos impiedoso do que Raymond Carver e menos desesperado do que Bukowski. É uma literatura generosa. (CAM)
Lucia Berlin já trabalhou como faxineira e também enfermeira e telefonista e morreu em 2004, aos 68 anos. Publicou 76 contos em vida em três livros. Quarenta e três deles estão reunidos nesta seleta de contos escolhidos pela Companhia das Letras. Ela trata da vida cotidiana da classe média e alta norte-americana com contos que mostram uma lente de aumento sobre pequenas coisas, a princípio sem importância, como a relação improvável entre duas pessoas diferentes à espera de suas roupas numa lavanderia ou o cotidiano de uma faxineira nas inúmeras casas para as quais trabalha. No posfácio, Lydia Davis fala por mim: “O que importa é a história… A vivacidade da prosa de Lucia Berlin está em parte no ritmo – às vezes calmo e fluente, equilibrado, suave e descontraído; e outras vezes staccato, telegráfico, acelerado”. (LGL)
~ 2 ~
As coisas que perdemos no fogo, de Mariana Enriquez (Intrínseca)
Doze contos cujos pontos fortes são o olhar singular de suas protagonistas (quase todas mulheres), a segurança com que a autora maneja a linguagem e a forma como se apropria de convenções do gênero do horror para realizar um comentário elíptico mas incisivo sobre a Argentina dos últimos 40 anos. (CAM)
Os méritos de “As coisas que perdemos no fogo”, de Mariana Enriquez, são vários. A começar por trazer vigor e energia para um gênero massificado por clichês e tramas duvidosas, como é o caso do terror. Em segundo lugar, por se embeber de narrativas clássicas, ao estilo de Edgar Alan Poe e Lovecraft, para revelar doze contos repletos de tensão e angústia onipresente nas sombras. Em terceiro, por ser capaz de trazer questões contemporâneas para dentro da trama; a autora argentina escreve sobre os fantasmas da ditadura, sobre a favelização dos bairros periféricos de Buenos Aires, sobre bruxas modernas revelando-se por causa do feminicídio, sobre os traumas econômicos decorrentes de Carlos Menem e dos governos Kirchner. Porém, o maior mérito é construir histórias cuja atmosfera sombria causa forte impacto no leitor, mostrando que o maior terror encontra-se dentro do ser humano e da sua capacidade inata para o mal. (GMC)
~ 3 ~
Tetralogia napolitana, de Elena Ferrante (Biblioteca Azul)
Se você é daqueles que foge de moda, um alerta: o conteúdo realmente faz jus ao hype. (DD)
A Série Napolitana é um pouco como a vida de suas personagens Lila e Lenu. O primeiro volume tem um frescor e uma vida que neste quarto foram definitivamente substituídas por uma noção de cansaço e por uma doída melancolia. A escrita hipnótica de Ferrante nos fez amar suas personagens e neste quarto volume se dedica a massacrá-las com a noção dolorida de que o tempo passou. Para todos. (CAM)
~ 4 ~
Laços, de Domenico Starnone (Editora Todavia)
Laços é um romance breve, mas contundente, sobre como fórmulas tíbias de covardia podem, sob o pretexto de solucionar um problema e salvar uma estrutura em perigo, terminar por liquidá-la de todo. Um casal se separa. O casal se reconcilia, mas é impossível retomar os laços desfeitos, apenas como uma paródia rançosa. O resultado disso se deixa ver anos depois nos laços familiares que em tese foram um dos motivos para a reconciliação. É isso e mais. (CAM)
De dentro do olho do furacão, é a síntese de uma família destroçada. (DD)
~ 5 ~
Bob Dylan – Letras (1961-1974) – Volume 1 (Companhia das Letras)
Um livro obviamente indispensável para os fãs de Dylan, mas também importante para entender os critérios que nortearam a decisão da Academia Sueca ao escolhê-lo para receber a mais alta honraria concedida a um escritor ou poeta vivo, o Nobel de Literatura 2016, uma decisão polêmica que foi questionada por muitos romancistas, poetas ou simplesmente puristas da literatura tradicional. Esta edição bilíngue é dividida em dois volumes e cobre toda a carreira e discografia do cantor e compositor em ordem cronológica, inclusive com algumas canções inéditas lançadas apenas em álbuns ao vivo. (AK)
Precisou o cara ganhar o Nobel para que publicassem essa indispensável compilação. (CC)
~ 6 ~
Diário de Kóstia Riábtsev, de Nikolai Ognióv (Editora 34)
Um retrato – divertidíssimo – da adolescência na União Soviética. (DD)
~ 7 ~
Raízes do Conservadorismo Brasileiro: a Abolição na Imprensa e no Imaginário Social, de Juremir Machado da Silva (Civilização Brasileira)
Resultado de quatro anos de árdua pesquisa documental em arquivos de periódicos, esta obra é essencial por aponta caminhos capazes de elucidar por que o Brasil é um país em débito com a própria história. Partindo da análise de discursos políticos e jornalísticos do início do século XIX, Juremir identifica fundamentos conservadores que permearam o contexto da assinatura da Lei Áurea e a criação da República brasileira. Com texto ágil, Juremir desvela as origens do conservadorismo e a história da busca pela igualdade social no Brasil. Chamo atenção para o trecho do capítulo Lenda da Criação do Preto, sobre um artigo veiculado pelo jornal A Província do Espírito Santo, em 11 de setembro de 1887, tratando o negro como o pior que uma sociedade poderia ter. Aterrador. (LGL)
~ 8 ~
A Descoberta da Escrita, de Karl Ove Knausgård (Companhia das Letras)
Karl Ove Knausgård prossegue com sua monumental epopeia da banalidade. No quinto capítulo de sua série de autoficção, Karl Ove, o personagem, se vê às voltas com a complexidade de desafios que enfrentou ao longo de toda a juventude; evoluir na escrita e se realizar sexualmente. Matriculado em uma espécie de oficina de criação literária na cidade de Bergen, ele se apaixona, bebe demais, dá vexame, sente-se inferiorizado pelo talento dos colegas. E é tudo narrado com maestria. (CAM)
~ 9 ~
Uma Sensação Estranha, de Orhan Pamuk (Companhia das Letras)
Novamente a cidade de Istambul é a grande personagem do romancista Orhan Pamuk, prêmio Nobel de Literatura 2006. Localizada entre a Europa e a Ásia e conhecida no passado como Bizâncio e Constantinopla, durante séculos assimilou diferentes culturas, tendo feito parte dos impérios Romano, Bizantino e Otomano até ser incorporada à República da Turquia em 1923, como parte das reformas políticas implementadas por Mustafa Kemal Atatürk (1881-1938), quando perdeu o status de capital para Ancara. Istambul é recriada pelos olhos de Orhan Pamuk que descreve a melancolia do eterno conflito entre modernização e tradição. (AK)
~ 10 ~
Beethoven, de Jan Swafford (Amarilys)
Talvez o mais suculento lançamento do ano; um calhamaço de mais de 1056 páginas que explora profundamente a vida e a obra de um dos maiores gênios da espécie. Um acontecimento que deveria ter sido enaltecido e propagandeado em todos os meios midiáticos, mas que, infelizmente, pouca gente se deu conta. Também uma iniciativa dessa estupenda editora que é a Amarilys. (CC)
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Os outros livros citados, crítico a crítico:
Alexandre Kovacs
Roberto Bolaño – O espírito da ficção científica (lançamento: 03/02/2017)
A obra faz parte de um legado literário de mais de 14.000 páginas, entre cadernos, pastas e cartas, deixado pelo escritor chileno, que é considerado o mais influente da literatura espanhola contemporânea. Não há como fugir da antiga discussão sobre a validade de herdeiros lançarem no mercado obras inéditas que não foram devidamente finalizadas e aprovadas pelos próprios criadores, como é o caso aqui. Na verdade, Bolaño, que morreu com apenas 50 anos, é frequentemente citado neste tipo de polêmica já que seus livros mais importantes foram lançadas postumamente, como “2666” e “O Terceiro Reich”.
Hilda Hilst – Da poesia (lançamento: 24/05/2017)
Um livro absolutamente imperdível. Tão pouco conhecida, a poesia de Hilda Hilst (1930-2004) enfim começa a ganhar o merecido lugar de destaque na literatura brasileira. Todos os seus poemas lançados em 25 livros, desde “Presságio”, de 1950, até “Cantares do sem Nome e de Partidas”, de 1995, reunidos em um único volume, em uma bem cuidada edição. Uma obra que se lê com prazer do início ao fim, mas que deve ser relida aos poucos, uma espécie de livro sagrado (e profano) para nos acompanhar por toda a vida.
Anne Enright – A Estrada Verde (Lançamento: 08/06/2017)
O reencontro de uma família irlandesa depois de muitos anos de afastamento é mais uma vez o tema de Anne Enright neste romance, um pano de fundo já utilizado com sucesso pela autora em “O Encontro”, premiado com o Booker Prize de 2007. Em “A Estrada Verde”, a narrativa em terceira pessoa descreve o efeito devastador da passagem do tempo, aproximadamente quatro décadas, na trajetória dos integrantes da família Madigan que retornam para a antiga casa de família no interior da Irlanda para comemorar o Natal.
Sinclair Lewis – Não vai acontecer aqui (lançamento: 02/09/2017)
Escrito em 1935 por Sinclair Lewis (1885-1951), primeiro norte-americano a ser agraciado com um prêmio Nobel de Literatura em 1930, este romance, que não era normalmente destacado em sua bibliografia, ganhou muito espaço na mídia este ano devido à eleição de Donald Trump e o crescimento dos movimentos de extrema direita em todo o mundo. Sinclair Lewis imaginou que a eleição de 1936 nos EUA seria ganha por um candidato populista, xenófobo e vaidoso com base em uma campanha que prometia aos eleitores um país próspero e grande novamente. É irresistível não comparar este personagem ao polêmico presidente norte-americano atual e sua plataforma política, fazendo do autor e sua distopia contra os regimes autoritários um perigoso alerta para o futuro.
Milton Hatoum – A Noite da Espera (lançamento: 27/10/2017)
Ótima notícia para a literatura, Milton Hatoum voltou a publicar e com uma trilogia! Nove anos depois de “Órfãos do Eldorado”, o escritor amazonense muda o foco para as cidades de São Paulo, Brasília e Paris em um clássico romance de formação com início nos anos sessenta, durante os Anos de Chumbo do governo militar. Este primeiro volume apresenta uma narrativa fragmentada, alternando trechos de diários e cartas do jovem protagonista Martim que, aos dezesseis anos, deixa São Paulo juntamente com o pai para iniciar uma vida nova em Brasilia, depois de uma ruptura traumática do casamento. Martim relembra o seu passado alguns anos depois, já morando em Paris, nos anos setenta, transcrevendo trechos de suas memórias nos períodos de colégio e universidade em Brasília.
Haruki Murakami – Crônica do Pássaro de Corda (lançamento: 21/11/2017)
Sem dúvida um dos livros mais delirantes e criativos de Haruki Murakami, originalmente publicado em três volumes no Japão, de 1994 a 1995, foi traduzido para o inglês em 1997 e chega finalmente ao Brasil, depois de uma década de atraso, nesta edição traduzida diretamente do japonês por Eunice Suenaga. É recomendado para os fãs e também iniciantes no universo ficcional do autor que encontrarão nas quase oitocentas páginas, o estilo inconfundível que mais aproxima as culturas do ocidente e oriente com sua mistura de realismo mágico e literatura policial noir.
Carlos André Moreira
O Vendido, de Paul Beatty
Autor vencedor do Pulitzer, Beatty prova o valor e a força de uma sátira construída com rigor e qualidade. Um livro devastador em que uma linguagem apaixonante e uma trama simples se juntam para debater com complexidade temas como racismo, identidade, preconceito e até mesmo cultura pop.
Breve História de Sete Assassinatos, de Marlon James
Ragga, cultura pop, política, marginalidade, droga, terceiro mundo, a violência como o único elemento estruturante da história de países subdesenvolvidos, o misticismo, linguagem como experimentação, o fantástico. É esse o coquetel que compõe sste livro, que se organiza em volta de um atentado fracassado cometido contra Bob Marley na Jamaica. Um dos mais vivazes exemplares da literatura contemporânea.
O último grito, de Thomas Pynchon
Uma história que tem um pouco de tudo sobre quase tudo para montar um panorama do mundo contemporâneo pós-11 de setembro. Uma investigadora fiscal descobre uma complexa conspiração que vai dos atentados terroristas à deep web. Nada diverso do que já conhece quem já leu alguma das obras mais ambiciosas do autor. E continua ótimo.
Anos de formação – os diários de Emilio Renzi, de Ricardo Piglia
Piglia sempre foi um mestre em transformar a memória em matéria de ficção, a ficção em tema da própria busca pessoal de seus personagens. Aqui, ao lançar-se nas anotações de seu próprio passado, transforma sua juventude em um dos melhores romances de formação lançados recentemente.
Os Despossuídos, de Ursula K. Le Guin
Uma das aproximações mais originais da luta ideológica da Guerra Fria neste livraço em que um cientista de um planeta anarquista decide ir até o planeta “capitalista” vizinho como um emissário para reatar laços entre as duas comunidades, estremecidas desde que um contingente de revolucionários deixou o planeta Urras para estabelecer uma utopia socialista na lua de Anarres, cem anos antes. Escrito no calor da hora, em 1974, mostra que nada é muito simples nos dois lados da querela.
Charlles Campos
O túmulo de Lênin, de David Remnick
Um extenso livro na melhor linha do jornalismo literário, escrito pelo melhor escritor entre os autores do gênero. Trata dos mínimos aspectos da derrocada da União Soviética, vivendo ao vivo a história (Remnick morava na URSS à época, e presenciou tudo). O livro se divide em capítulos que podem ser lidos individualmente, e traça perfis de personalidades históricas, literárias e anônimas, como Soljenitsin, Gorbachev; e intelectual dissidente que fugiu para uma das ilhas litorâneas desabitadas do continente e viveu uma solidão frugal e absoluta. Um clássico!
Cosmos, de Carl Sagan
A reedição desse clássico dos clássicos, há anos desaparecido das estantes nacionais, já o torna por si só imprescindível entre os lançamentos e re-lançamentos do ano. Sagan é um consolo de calma, erudição e respeito ao sagrado entre a estridente vaidade acadêmica dos divulgadores de ciência.
Nicholas Nickleby, de Charles Dickens
Na verdade são 3 livros desse absurdamente grande autor que merecem estar na minha lista, lançados em trabalho exímio e apaixonado em 2017 pela editora Amarilys. Coloco esse em destaque por ser um título secundário entre a bibliografia de Dickens (embora não menos excelente), e também há quase meio século sem ser editado no Brasil.
Contos Reunidos, de Dostoiévski
Como não colocar esse volume, lançado pela sempre excepcional editora 34, entre os melhores?
Viva la Revolucion, de Eric Hobsbawn
Uma coletânea de quase todos os textos escritos por esse prolífico e gratificante historiador sobre a América Latina do século XX. São textos curtos, a maioria, e uma importante fonte de conhecimento.
Guerra e Paz, de Liev Tolstói
A Cia das Letras fez um trabalho à altura da Cosac ao relançar com elegância essa ostensiva caixa com os dois volumes em capa dura.
Cama de gato, de Kurt Vonnegut
Ler Vonnegut é estar certo de que a sublimidade vem disfarçada da mais inofensivo prosaísmo. Vonnegut não se discute, ele está acima de qualquer crítica; o que se tem que fazer é apenas ler e se deslumbrar.
O Dom, de Vladimir Nabokov
Nabokov em seu melhor, memorialístico, proustiano anárquico, cheio de ternura, nostalgia e ira. Pode-se achá-lo um esnobe e arrogante, mas ele é maravilhoso. Talvez o melhor livro dele que eu li, depois de Fala, memória e Lolita
Daniel Dago
De duas, uma, de Daniel Sada (trad. Livia Deorsola, editora Todavia)
Uma de duas: ou Sada é mestre do estilo , ou é leitura obrigatória para quem quiser aprender a escrever bem.
Argonautas, de Maggie Nelson (trad.Rogério Bettoni, editora Autêntica)
A mais bonita história de amor dos últimos tempos, e que vai te fazer refletir bastante sobre diversos temas.
Ele que o abismo viu: Epopeia de Gilgámesh, de Sin-leqi-unninni (trad. Jacyntho Lins Brandão, editora Autêntica)
Desde já o favorito a todos os prêmios de tradução de 2018 – uma tradução, em todos os sentidos, épica.
Gustavo Melo Czekster
“O cânone americano”, de Harold Bloom
A crítica literária se divide entre os fãs e os “haters” de Harold Bloom, mas é impossível lhe ser indiferente. Em “O cânone americano”, ele parte da ideia de constelação literária, ou seja, a noção de que dois escritores em pólos distantes podem atrair, fascinar ou repudiar uma gama de outros escritores e leitores, para formar a sua escolha pessoal dos maiores autores dos Estados Unidos. Analisados em seis pares aproximados por diferenças e semelhanças (Walt Whitman e Herman Melville; Ralph Waldo Emerson e Emily Dickinson; Nathaniel Hawthorne e Henry James; Wallace Stevens e T. S. Eliot: Mark Twain e Robert Frost; William Faulkner e Hart Crane), usando muita ironia e mordacidade, Bloom fala dos mecanismos literários que levam alguns escritores a se destacarem dos demais, e de como um sistema literário necessita de paradigmas de excelência para se constituir como fonte de inspiração e progresso.
“O imperador do sorvete e outros poemas”, de Wallace Stevens
A única tradução de Wallace Stevens para o Brasil era de 1987, e se encontrava esgotada até a Companhia das Letras reeditar – e ampliar – o livro originalmente publicado. Wallace Stevens é um poeta que se assemelha muito a Carlos Drummond de Andrade na capacidade de fazer a poesia surgir de maneira triunfal em meio aos fatos mais cotidianos, com imagens que marcam a memória. Com grande apuro técnico e uma contenção exemplar do arroubo poético, a obra de Wallace Stevens encanta: nesses tempos em que se tornou constante longos desabafos e um apelo forte à subjetividade e à presença fisicamente impositiva do autor como “ser que enuncia o poema”, ler poesias que saem ao natural de um sorvete ou de uma gota de água são alentos para leitores cansados de um mundo feérico.
“Tuiatã”, de Hilda Simões Lopes
Um grande romance histórico precisa ter História e muitas histórias no seu interior. Em “Tuiatã”, um romance de fôlego (nunca um clichê foi tão adequado para classificar um livro de 560 páginas que deixa o leitor sem fôlego à medida que os acontecimentos transcorrem), Hilda Simões Lopes reconta a formação do Rio Grande do Sul dentro de uma narrativa que entrelaça imaginação e realidade, personagens famosos e outros ficcionais. Fosse só isso e seria um livro comum, mas a autora sabe aliar uma vasta pesquisa documental com talento literário, construindo personagens marcantes ao mesmo tempo em que narra com inventividade. É um livro que não se nota passar, na melhor moda dos folhetins, e transmite vida a cada página ultrapassada, além do grande prazer de rever fatos históricos por dentro de uma narrativa muito bem elaborada.
“O supermacho”, de Alfred Jarry
Uma obra extremamente divertida para quem se encanta pelas noções de absurdo. Em “O supermacho”, Alfred Jarry – mais conhecido pelas suas obras teatrais, em especial o “Ubu” e o “Ubu Rei” – cria uma série de esquetes e diálogos entre personagens mediados por depoimentos, recortes de jornal, entrevistas, poemas, informações científicas, tudo para contar a história de André Marcueil, um homem capaz de transar mais de 80 vezes por noite, circunstância erótica que o aproxima do “Satiricon”, de Petrônio. Mas não fica somente nisso: também existe a criação de uma máquina capaz de incutir sentimentos em pessoas e uma disputa ciclística do personagem com um trem por 10 mil milhas de distância (ele estava dopado por uma substância química), para ficar em somente alguns elementos fantásticos. Considerado uma das obras precursoras da ficção científica, “O supermacho” é um livro que não cansa de divertir e de suscitar novas interpretações.
“A coleção privada de Acácio Nobre”, de Patrícia Portela
Usando uma das funções primordiais da literatura, que é recapturar a vida de personagens notáveis, Patrícia Portela conta a história quase inverossímil de Acácio Nobre, um homem cuja trajetória foi apagada pela ditadura de Salazar e que ressurge das páginas do livro como uma alma inquieta, inventiva, um homem deslocado do tempo e do espaço. Por meio do resgate de fragmentos deixados para trás, de cartas e de comentários dos seus contemporâneos, a escritora ressuscita Acácio Nobre, inventor, matemático e filósofo, o “Leonardo da Vinci português”, em uma narrativa que nunca perde a empolgação de quem está contando uma ótima história, passando esse sentimento para o leitor.
“Talvez um instrumento o que se houve ao fundo”, de Guto Leite
Uma das gratas surpresas do ano que se encerra, o livro de Guto Leite, “Talvez um instrumento o que se houve ao fundo”, é de difícil categorização: toda vez que se tenta sintetizá-lo em palavras, ele mostra novas facetas. Em tempos de massificação do fazer poético e do uso de fórmulas cansadas, é bom ler um escritor que não tem medo da forma e que as subverte até chegar ao ponto de tensão extrema. É possível dizer que é um livro de poemas, mas é mais do que isto: também é um livro de denúncias, de risadas disfarçadas, de lágrimas plenas de revolta no meio da noite, de lirismo desbragado e de poesias que surgem como espantos no meio do cotidiano. Não se pode negar, ainda, que está repleto de ritmo e de circunstâncias, uma obra que se renova a cada página e traz consigo uma surpresa e um olhar novo sobre a vida.
“Legenda Áurea”, de Jacopo de Varazze
Obra esgotada há muitos anos, em 2017 a Companhia das Letras relançou o clássico escrito no século XIII e que se mantém como um dos textos mais inspiradores já escritos. Ao descrever as vidas, obras e milagres de 153 santos da Igreja Católica, Jacopo de Varazze acabou realizando tanto um documento histórico quanto um livro de extraordinária ficcionalidade. Apesar de possuir um lado religioso importante (ajudou a cristalizar e a disseminar o cristianismo por meio das vidas exemplares dos santos), pode ser lido como algo fantástico e inverossímil sob variados aspectos, dizendo muito sobre o extraordinário poder da criatividade humana e, em especial, sobre a sua capacidade de criar boas histórias. Um livro muito divertido na seriedade com que descreve uma série de impossibilidades – ou, para quem prefere lê-lo assim, uma descrição apurada da época em que milagres, sacrifícios e intervenções divinas eram fatos rotineiros.
“Sapiens: História breve da Humanidade”, de Yuval Noah Harari
Imaginar a trajetória humana como o desejo de estabelecer uma narrativa é o grande mérito de “Sapiens: História breve da Humanidade”, de Yuval Noah Harari. Ao colocar a linguagem como o centro da evolução, o autor percebe que religião, política, sociedade e economia estão articuladas em torno da linguagem e de suas possibilidades, em especial através da ideia das “realidades imaginadas”, nas quais o ser humano sonha o seu futuro. Mesmo sob o risco de às vezes soar otimista demais, parecer auto-ajuda ou comparar realidades muito díspares para forçar o seu argumento, não se pode negar que o livro de Yuval Noah Harari é uma atraente narrativa sobre as capacidades dos indivíduos de transformarem a sua realidade, demonstrando – de forma muito hábil – que estamos no mundo para agregarmos linhas em uma história ainda em construção.
“Dicionário de línguas imaginárias”, de Olavo Amaral
O conto é um gênero subestimado por sua brevidade, mas muitos ignoram o quão difícil é construir um mundo verossímil e repleto de subentendidos no espaço de poucas páginas. Em “Dicionário de línguas imaginárias”, Olavo Amaral tece dez narrativas curtas, todas versando sobre as dificuldades de se comunicar. Seja criando a língua fictícia de um povo indígena que não possui palavras para “ir” e “vir”, seja entrando no fantástico em “O ano em que viramos ciborgues”, seja no homem que morre aos poucos por “excesso de palavras” e parte em uma expedição na Sibéria rumo ao fim de todas as linguagens, os contos de Olavo Amaral formam um conjunto que, ao mesmo tempo em que presta tributo aos clássicos do gênero, também demonstram uma visão de mundo desencantada em relação ao que vivemos, estabelecendo que a maior de todas as dificuldades é comunicar com precisão aquilo que sentimos e somos, pois sempre se perde algo precioso.
Luiz Gonzaga Lopes
UMA HISTÓRIA CULTURAL DA RÚSSIA, de Orlando Figes (Record, 882p.)
Escrito originalmente em 2002 e lançado no Brasil agora em 2017 nesta onda de obras sobre a Rússia, o texto de Figes fez comigo um mergulho regressivo de alguém que conheceu em São Petersburgo e Moscou em 2012. Flertando com a literatura da época de Pushkin a Tolstói, de Dostoiévski a Gogol, o autor trata da alma russa, com o dilema se ela é intrínseca a qualquer cidadão ou um mito, da idealização de ‘Piterburg’, como os locais chamam a cidade sonhada por Pedro no início do século 18 e de outros temas possíveis como os camponeses, os guerreiros, os soviéticos etc. Uma aula cultural.
CIVILIZAÇÃO: OCIDENTE X ORIENTE, de Niall Ferguson (Crítica/Planeta, 432p.)
O melhor deste livro é apresentar o contexto medieval, no qual as civilizações do Oriente dominavam o mundo, quando a China Ming se desenvolvia e os otomanos tomavam Constantinopla. A Europa Ocidental era miséria e pragas. Inglaterra, França, Portugal tentavam ações colonizadoras. O historiador escocês, que esteve no Fronteiras do Pensamento em novembro, mostra como a Europa e o Ocidente todo reverteram o quadro e sobrepujaram o Oriente, a partir de seis “aplicativos” do Ocidente: competição, ciência, direito de propriedade, medicina, consumo e ética do trabalho. Ele indaga se o Ocidente poderá manter este domínio ou se decairá nas próximas gerações.
BOSQUE DA SOLIDÃO, de Nilson Luiz May (Scriptum, 250p.)
A surpreendente obra visceral deste médico e escritor gaúcho me fez incluí-la na lista das cinco mais de 2017. Dois narradores em primeira pessoa, uma epígrafe de Hannah Arendt que resume o humano a viver no silêncio do desespero. Uma mãe com bipolaridade, um filho que tenta resolver o enigma do suicídio da mãe, um diário e um caderno que ajudam a esclarecer. Um final em aberto de alguém que passou 20 anos da sua vida tentando entender um ato, um contexto, uma decisão. Um livro para mergulhar, sofrer (à maneira dos grandes, de Tolstói, Flaubert, Kafka) e para espantar os demônios.