Do Mundo de K
Talvez a falta de assunto no mercado editorial internacional justifique a polêmica em torno da divulgação da identidade de Elena Ferrante na última semana com matérias publicadas na New Yorker, Guardian, El País,Corriere de La Sierra e em todos os cadernos culturais do mundo, inclusive no Brasil onde a autora é sucesso de público e crítica (siga os links para ler as resenhas do Mundo de K sobre os dois primeiros lançamentos da tetralogia italiana: “A amiga genial” e “História do novo sobrenome”).
Segundo a matéria do jornalista italiano Claudio Gatti (que ficou quase tão famoso quanto Elena Ferrante) a escritora seria Anita Raja, de 63 anos, tradutora de Franz Kafka para o italiano. Bem, este assunto ainda vai durar um bom tempo e, no final, até que ajuda a divulgar a literatura o que é um ótimo propósito, mas comprova como está cada vez mais difícil para os autores manterem sua privacidade em nossa época. Segue uma lista para lembrar do irresistível charme de alguns dos escritores reclusos mais famosos no Brasil e no mundo (por diferentes motivos) e suas obras de referência, esqueci algum?
(01) Edgar Allan Poe (1809 – 1849)
Os 40 anos de vida de Poe mais do que reclusos foram trágicos e atormentados pelo álcool. Ele tinha imenso prazer em identificar-se com a sua própria criação, por isso trajava sempre roupas negras, principalmente nos salões onde declamava seus poemas. Os contos fantásticos e sobrenaturais de Poe são muito famosos (O Poço e o Pêndulo, O Gato Preto, A Queda do Solar de Usher etc). Na verdade, poucos autores dominaram tão bem o estilo do conto quanto ele, além de ter sido um precursor do estilo policial (Os crimes da rua Morgue).
(02) Emily Brontë (1818 – 1848)
É difícil acreditar que uma autora jovem e introvertida tenha imaginado uma história de amor tão sombria e avançada para a Inglaterra do século XIX, onde a paixão impossível de Heathcliff por Catherine, devido aos preconceitos sociais, se transforma em violenta obsessão por vingança. O único romance de sua curta carreira foi criticado porque não era comum para a época um protagonista com tantos desvios de caráter quanto Heathcliff. Emily Brontë não conheceu o sucesso de sua obra, publicada com o pseudônimo de Ellis Bell, tampouco conseguiu escrever outros romances porque morreu aos trinta anos de tuberculose, um ano após o lançamento de O Morro dos Ventos Uivantes.
(03) Emily Dickinson (1830 – 1886)
Ela formou, juntamente com Walt Whitman e Edgar Allan Poe, a base de toda a poesia norte-americana do século XIX com técnicas que seriam desenvolvidas pelos movimentos modernistas do próximo século. É um fato extraordinário que todo o seu legado poético tenha sido desenvolvido à partir de uma vida reclusa. O trecho a seguir, citação da introdução de “Poemas de Emily Dickinson” da editora Hucitec em tradução de Idelma Ribeiro de Faria, desenvolve esta idéia: “Em sua cidadezinha rural não a poderiam compreender. Consideravam-na uma excêntrica (…) Seu pai sentia-se perplexo ante seu procedimento que não obedecia aos parâmetros convencionais. Sua mãe considerava-a um mistério e uma constante surpresa. Emily, deliberadamente, isolou-se em si mesma. Seu exílio foi a alternativa lógica para realizar-se como ser humano ímpar, dando corpo a sua genialidade.”
(04) Marcel Proust (1871 – 1922)
Escreveu a sua grande obra, “Em busca do tempo perdido”, em sete volumes (sendo os três últimos publicados postumamente) totalizando mais de 3000 páginas que representavam os costumes da aristocracia francesa do século XIX, tendo escrito a obra completa entre 1908 e 1922 e publicado, com muita dificuldade, entre os anos de 1912 e 1927. O autor passou os últimos três anos da sua vida confinado em seu quarto, dormindo durante o dia e trabalhando à noite para concluir seu romance. Ele morreu de pneumonia em 1922.
(05) William Faulkner (1897 – 1962)
Prêmio Nobel de Literatura de 1949 e prêmios Pulitzer de 1955 e 1963 (póstumo), é considerado um autor de referência na literatura norte-americana do século XX e um dos novelistas mais influentes em toda a prosa mundial, tendo sido definido como “o mais notável romancista de nosso tempo” por Jorge Luis Borges. Um autor de técnica extremamente complexa ao utilizar o fluxo de consciência, múltiplas vozes e alternando o tempo narrativo. Comprou uma fazenda com os ganhos dos roteiros que escreveu para Hollywood, mas passava o tempo caçando e pescando.
(06) Marguerite Yourcenar (1903 – 1987)
A obra mais reconhecida de Marguerite Yourcenar é “Memórias de Adriano” (1951). Sua recusa em aceitar a mais importante distinção literária francesa, o prêmio Goncourt, foi baseada em seu desagrado pela publicidade que tomou conta da literatura na década de 1950. Ela confirmou seus temores pelo papel que a televisão desempenhou no sentido de transformar os autores e seus livros em assuntos comerciais. A escritora, desde então, recusou sistematicamente convites para entrevistas na rádio e televisão francesas.
(07) Samuel Beckett (1906 – 1989)
Dramaturgo e romancista irlandês, Samuel Beckett, prêmio Nobel de Literatura de 1969, escreveu o romance “O Inominável” publicado originalmente em 1953, no idioma francês, é o último da trilogia formada por “Molloy” (1947) e “Malone morre” (1948). É considerado um dos principais autores do movimento Teatro do Absurdo. Sua obra mais famosa é a peça “Esperando Godot”. O autor tinha uma personalidade tão intimista que recusou o convite para viajar até Estocolmo e receber o prêmio Nobel porque tinha aversão a fazer discursos.
(08) Joseph Mitchell (1908 – 1996)
Foi um dos repórteres mais talentosos da The New Yorker. Na revista, tinha liberdade absoluta para escrever sobre o que quisesse, no prazo que julgasse necessário. Os últimos trinta anos de sua vida são cercados de mistério: não se sabe sobre o que escrevia diariamente na redação da revista e, apesar das inúmeras especulações a respeito, ignora-se o motivo de seu silêncio. Seu trabalho mais conhecido é “O segredo de Joe Gould”, sobre um andarilho boêmio e gênio na Nova York dos anos 1930.
(09) J.D. Salinger (1919 – 2010)
Após o sucesso de seu primeiro romance, “O apanhador no campo de centeio” (1951), sobre um fim de semana na vida de Holden Caulfield, jovem de 16 anos, Salinger passou a recusar entrevistas, se esconder dos fãs e evitar aparições públicas, tornando-se uma das personalidades reclusas mais famosas da literatura. É difícil dizer o quanto da aura de mistério que ele criou sobre a sua vida particular ajudou a tornar o romance um sucesso de vendas, mas o fato é que o livro se transformou em um clássico inspirador para as gerações futuras, principalmente adolescentes rebeldes.
(10) Patricia Highsmith (1921 – 1995)
Lançado originalmente em 1955, o romance “O talentoso Ripley” se tornou uma referência na literatura policial, gênero nem sempre respeitado pela crítica, mas enquadrar este romance em um único gênero, seja ele qual for, me parece uma injustiça com Patricia Highsmith que criou um personagem inesquecível e cheio de contrastes. Tom Ripley tem uma personalidade dividida entre a fragilidade e ambição. Em seu dia a dia a escritora era uma mulher reservada. Adoradora de gatos, viveu quase sempre solitária ao lado dos felinos, mantendo uma espartana rotina de trabalho.
(11) Harper Lee (1926 – 2016)
O grande romance de Harper Lee, “To Kill a Mockingbird” (“O sol é para todos” em tradução no Brasil), permanece como uma prova positiva de que o impulso da censura está vivo e bem nos EUA, ainda hoje. Para alguns educadores, o vencedor do prêmio Pulitzer é um dos maiores textos que os adolescentes podem estudar em uma aula de literatura norte-americana. Para outros, é considerado uma obra degradante, profana e racista que “promove a supremacia branca”. A autora passou toda a vida evitando entrevistas e reclusa até que fosse descoberto um romance inédito, “Vá coloque uma vigia”, escondido numa caixa, e lançado em 2015.
(12) Hunter S. Thompson (1937 – 2005)
Polêmico jornalista e escritor norte-americano. Conhecido pelo seu livro mais famoso, “Medo e Delírio em Las Vegas” (1972), Thompson foi o criador de um estilo denominado Jornalismo Gonzo que se caracteriza por eliminar a distinção entre autor e sujeito, ficção e não-ficção. Ele viveu recluso em um sítio fortificado nas imediações de Aspen, de onde escrevia diversos artigos para jornais e revistas. Suicidou-se com um tiro de espingarda na cabeça.
(13) Cormac McCarthy (1933 – )
Muito celebrado pela crítica, foi o vencedor dos prêmios: National Book Award e Pulitzer de Ficção em 2007. Entre seus melhores romances estão “Todos os Belos Cavalos” e “Onde os Velhos Não Têm Vez”. Seus livros são constantemente adaptados para o cinema, mas o autor não gosta de entrevistas, tentando preservar a sua privacidade.
(14) Don DeLillo (1936 – )
Escritor, dramaturgo e ensaísta norte-americano. Foi premiado com o National Book Award, o PEN/Faulkner Award e o Jerusalem Prize. “Submundo” foi finalista dos prémios Pulitzer e do National Book Award e recebeu em 2000 a Medalha Howells da American Academy of Arts and Letters pela mais eminente obra de ficção dos últimos cinco anos.
(15) Thomas Pynchon (1937 – )
Vencedor do National Book Awards de 1974 com o romance “O Arco-Íris da Gravidade”, o norte-americano Thomas Pynchon já tem o seu nome consolidado entre os maiores escritores contemporâneos em língua inglesa. Harold Bloom chegou a compará-lo com autores do nível de Don DeLillo, Philip Roth e Cormac McCarthy. A fama de recluso e inacessível, já que nunca concede entrevistas, foi mantida por Thomas Pynchon durante muitos anos e essa técnica de marketing, intencional ou não, também ajuda bastante na divulgação de seus principais romances:“O Leilão do Lote 49”, “Mason e Dixon”, “Vineland” e “Vício Inerente”.
(16) J.M. Coetzee (1940 – )
John Maxwell Coetzee é um dos mais conceituados autores contemporâneos em língua inglesa e um dos preferidos aqui da casa, nascido em 1940 na África do Sul e ganhador do Nobel de literatura de 2003, único escritor a ser premiado por duas vezes com o Booker Prize, primeiramente em 1984 com “Vida e Época de Michael K” e depois em 1999 com “Desonra”, ambos os romances retratando a dura realidade social na África do Sul pós-apartheid.
(17) Salman Rushdie (1947 – )
O romance “Os filhos da meia-noite” de Salman Rushdie foi premiado como o melhor entre todos os vencedores desde a primeira edição do Booker Prize. Rushdie, Cavaleiro do Império Britânico, de origem indiana, ficou mundialmente conhecido após ter sido ameaçado de morte por um decreto do aiatolá Khomeini em 1989, como punição pelo romance “Os versos satânicos”. Logo, a reclusão do autor não é por opção própria, mas devido â perseguição política.
(18) Dalton Trevisan (1925 – )
Hoje o autor já é devidamente respeitado no Brasil e tem o seu valor reconhecido depois de ter sido eleito por unanimidade vencedor do Prémio Camões de 2012, ano em que também recebeu o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra. Certamente é o caso mais radical de reclusão em nosso país, ganhando o apelido de Vampiro de Curitiba, um de seus personagens mais famosos.
(19) Rubem Fonseca (1925 – )
Assim como Dalton Trevisan, ele adora o anonimato, mas é descrito por amigos como pessoa simples, afável e de ótimo humor. O mineiro Rubem Fonseca ficou famoso pelo seu estilo urbano e violento, seja em romances ou contos, destacando-se “O Caso Morel” (1973), “Feliz Ano Novo”(1975), “O Cobrador” (1979), “A Grande Arte” (1983) e “Agosto” (1990), entre outros dignos representantes do policial de suspense nacional.
(20) Raduan Nassar (1935 – )
Raduan Nassar após ter sido finalista do Man Booker International Prize com a tradução de “Um Copo de Cólera” para o inglês, foi honrado com a premiação literária mais importante da língua portuguesa, o Prêmio Camões de literatura 2016. O autor, que já completou 80 anos, vive recluso e se recusa a dar entrevistas desde os anos 1980 quando decidiu abandonar a literatura após escrever dois romances clássicos: “Lavoura Arcaica” (1975) e “Um Copo de Cólera” (1978).
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