Por Miguel Jost
Do blog da Companhia das Letras
A obra poética de Vinicius de Moraes é, sem dúvida alguma, uma das mais significativas na vida literária brasileira no século XX. Seus poemas e versos ocupam um lugar privilegiado dentro da tradição não só pela riqueza de forma, estilo e técnica, mas, principalmente, pela sua enorme popularidade fora dos circuitos convencionais da poesia e da literatura. Vinicius é até hoje um dos poetas mais lidos e citados em nosso país, e podemos afirmar também que foi um dos escritores que mais influenciou a formação de um ethos afetivo da sociedade brasileira. Sua capacidade de criar toda uma nova gramática sobre as maneiras de escrever e conceber o amor foi definitiva nesse processo. Mas essa habilidade ímpar de traduzir a experiência do amor de forma tão íntima e certeira por meio da sua poesia muitas vezes rasurou o fato de Vinicius ter sido um poeta de grande dedicação ao labor e ao fazer poético. A imagem do poetinha, do homem de espírito livre e boêmio, somada ao seu sucesso como compositor popular a partir dos anos 1960, também consolidou essa impressão sobre o autor.
É fundamental, nesse sentido, sublinhar que Vinicius era um perspicaz conhecedor da tradição poética e de suas diversas escolas e estilos. Desde menino, quando ficava horas transcrevendo poemas de cunho simbolista e parnasiano, passando pelos anos da Faculdade de Direito, quando se dedicou ao estudo de poetas franceses — como Claudel, Baudelaire e Rimbaud —, e chegando ao período de profunda imersão na obra dos poetas ingleses, Vinicius foi um estudioso convicto que demonstrou vasto interesse em conhecer a poesia e a fortuna crítica de autores clássicos.
Nesse mergulho na tradição da poesia inglesa — por ocasião da bolsa de estudos em Oxford, fruto do prestigioso prêmio Filipe d’Oliveira, nos anos 1930 —, Vinicius chegava a jornadas rigorosas de até doze horas de estudo ininterrupto. Sua fascinação pelos sonetos de Shakespeare, que o poeta traduzia incessantemente nesse período, foi um dos pilares para que Vinicius fosse considerado por muitos críticos nas décadas seguintes um reinventor da forma-soneto na poesia brasileira.
O amplo conhecimento de diversas tradições poéticas da literatura ocidental é o que levou Manuel Bandeira a afirmar sobre Vinicius: “Tem o fôlego dos românticos, a espiritualidade dos simbolistas, a perícia dos parnasianos (sem refugar, como estes, as sutilezas barrocas) e, finalmente, homem bem do seu tempo, a liberdade, a licença, e o esplêndido cinismo dos modernos”.
As nuances modernas, românticas, simbolistas e parnasianas se interpenetram e se contaminam, principalmente nos livros lançados a partir dos anos 1940. Por vezes, é possível observar alguns desses cruzamentos até mesmo dentro de um único poema. Esse híbrido de sua escrita é o que impossibilita a classificação de Vinicius dentro de qualquer escola ou movimento, gerando um enorme desconforto para os críticos e historiadores da literatura que trabalham com esse tipo de pressuposto.
A publicação em 1946 de Poemas, sonetos e baladas é um dos exemplos mais bem-acabados desse mosaico de estilos e formas que caracterizou a sua produção poética. Com ilustrações de seu amigo Carlos Leão, o livro demonstra toda a heterogeneidade que marcou a formação de Vinicius. No posfácio da reedição em 2008 pela Companhia das Letras, o ensaísta José Miguel Wisnik, em total consonância com a citação de Manuel Bandeira, escreve: “O livro de 1946 se desdobra em faces românticas, clássicas, simbolistas e modernas; é desigual mas sempre elevado, como tudo no autor, pela nobreza do sentimento e pela autenticidade da veia lírica”. É possível, portanto, afirmar que essa confluência entre tantas escolas, e principalmente sua inadequação para se tornar um representante fiel delas, é uma das principais características da escrita de Vinicius.
A partir dos anos 1950, mantendo o mesmo espírito livre, o poeta estenderia sua atuação para o teatro, o cinema, a crônica e, principalmente, a canção popular. Sem fazer juízo de valor entre essas linguagens e sem respeitar certos postulados da época — como a clássica distinção entre a literatura como alta cultura e a música popular como baixa cultura —, o autor se tornou um dos personagens mais importantes para que esse tipo de hierarquia não se consolidasse em nosso país. Assim como em toda sua trajetória nos livros de poesia, Vinicius não se interessava por limites preconcebidos quando o assunto era seu processo artístico criativo. O que nunca mudou foi a sua matéria-prima: a palavra poética, em suas diversas possibilidades e dimensões.
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Miguel Jost é professor do Departamento de Letras da PUC–Rio, é mestre e doutor em Estudos de Literatura por esta mesma instituição. Em 2008 organizou e assinou o prefácio do livro Samba Falado – Crônicas musicais de Vinicius de Moraes, que revelou um enorme volume de textos do poeta sobre a música popular ainda não publicados. Desde então vem desenvolvendo uma série de trabalhos ligados a preservação e circulação da obra de Vinicius. Em 2013 foi convidado para ser curador de uma série de atividades organizadas pela VM Produções por conta do centenário de nascimento do poeta. Em 2014 foi também o curador geral de uma grande exposição que marcou o fim das comemorações do centenário de Vinicius de Moraes no Rio de Janeiro.
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