Lorena Paim e Adélia Porto*
A gaúcha Maria Regina Pilla militou contra duas ditaduras, a brasileira e a argentina. No Brasil, foi membro do Partidão, o Partido Comunista Brasileiro, e do POC – Partido Operário Comunista, uma dissidência do PCB. Na Argentina, militou no PRT – Partido Revolucionário dos Trabalhadores e acabou presa. Foi torturada, assunto sobre o qual não gosta de falar. Ao ser expulsa pela ditadura argentina, obteve asilo na França. Em seu livro “Volto semana que vem”, recentemente lançado pela Cosac Naify, ela relembra momentos tristes e alegres de sua trajetória. A semana que esperava passar fora se transformou em 22 anos. Nos 56 pequenos textos, ela conserva o bom humor, apesar da dificuldade enfrentada para redigir alguns deles. Escrever o livro foi como se livrar de um problema, diz a escritora e tradutora. “Volto semana que vem” é um dos três finalistas ao Prêmio Açorianos de Literatura 2015, na categoria narrativa longa. O resultado será divulgado na “Noite do Livro”, em 23 de novembro, às 20h, no Teatro Renascença.
Sul21- O que te levou a escrever agora um livro de memórias?
Maria Regina Pilla – Há anos, tinha vontade de escrever um livro, de botar no papel tudo aquilo, que, apesar de ter feito análise, continua me incomodando. Escrever o livro foi como me livrar de um problema, me livrar de um período da minha vida que foi bacana, no qual aprendi muita coisa, mas também enfrentei coisas bem difíceis. Deixei para escrever as partes ruins todas juntas. Foi bem difícil. Era uma coisa sofrida, que vinha de dentro. Cuidei para que o texto tivesse um tom de não truculência, pois não interessa, já contaram, todo mundo já sabe como é que é (a prisão, a tortura). Fiz outro tipo de abordagem, todos que leram viram isso, um jeito diferente de contar esta história.
Sul21 – E de não fazer o papel de vítima?
MRP – Não sou vítima, eu escolhi a militância. Não sabia tudo que aconteceria, mas sabia que não ia ser fácil, que tinha morte, tortura. É idiota e desonesto quem fala que não sabia. Foi uma escolha minha que assumo.
“O livro corresponde a como a memória acontece”
Sul21 – Esse livro foi escrito só com base na memória ou pesquisaste algo?
MRP – Tem uma parte de pesquisa, como o capítulo da “Noite dos Lápis”, que conta dois episódios de repressão brutal na Argentina. E foi bem ruim (relembrar e escrever). Pesquisei filmezinhos na internet em que jovens contam, com muita raiva, muita bronca, aquela situação. Foi ruim de reviver. Fui olhar para reavivar a memória. O livro tem a forma de pequenos textos, com datas que vão e vêm. Acho que é coisa da memória, em que não se tem a lembrança cronológica. O livro corresponde a como a memória acontece na cabeça da gente anos depois dos episódios passados.
Sul21 – Como escolheste os episódios narrados?
MRP – Eram os que vinham à memória. Por exemplo, um ex-namorado comentou comigo que não entendia como ele aparecia tão pouco no livro… Foi difícil encontrar a forma de escrever. Na Faculdade de Letras da UFRGS, onde fiz algumas cadeiras, consultei um professor sobre a forma de escrever. Eu já tinha produzido algo que estava guardado no computador: textos pequenos, escritos há muitos anos. O professor me aconselhou a publicação do livro.
Sul21- A opção por histórias curtas foi consciente?
MRP – Elas saíram assim. Eu não sei escrever texto longo.
Sul21- Quais as histórias mais doloridas para ti e quais as menos?
MRP– Todas as histórias da infância me deram prazer de escrever. As mais doloridas foram as da “Noite do Lápis”. Também as que dizem respeito ao escritor argentino Rodolfo Walsh, que não conheci, mas acompanhei o que ele escreveu, seu desaparecimento (muito divulgado em Porto Alegre pelo jornal Versus). Houve um episódio em que a polícia (argentina) massacrou militantes peronistas. Walsh foi atrás das vítimas e reescreveu a história. Contou como realmente aconteceu, no livro “Operação massacre”. “O que aconteceu a Rosendo”, outro livro dele, fala sobre um tiroteio entre peronistas de diferentes facções, numa confeitaria em Buenos Aires. São reconstruções de episódios sombrios da história argentina.
“Não imaginei que por um tempo tão longo eu ficaria longe de casa”
Sul21 – O texto sobre a conversa que tiveste com a tua mãe, em Paris, é emocionante. Como sentes aquele momento?
MRP – Em parte eu tive que imaginar como essa história aconteceu. Na verdade, a mãe não me responsabilizava pela morte do meu pai. A literatura é assim. Me incomodei com muitas pessoas que achavam que eu faria a recomposição da morte de companheiros delas, sob tortura, na Oban, em1971. E isso não aconteceu. Não era a ideia deste livro reconstituir a história. Meu interesse era fazer literatura, escrever de forma mais ficcional. “Volto semana que vem” é outro episódio, isso aconteceu (a despedida do pai, prometendo voltar logo), mas não imaginei que por um tempo tão longo eu ficaria longe de casa. Abri o jogo em termos com meus pais, pois caso a polícia batesse ali eles não saberiam nada. Havia toda uma militância por trás que os pais ignoravam.
Sul 21 – Como vês o teu livro como criação literária?
MRP – Alguma coisa eu criei, não tinha o foco na história. Quero continuar escrevendo. Gosto de escrever, de ler, de conversar sobre essa coisa da criação.
Sul21 – Como começou tua militância política no Partidão?
MRP – Foi mais emotivamente. Um amigo me convidou para uma reunião do Partidão. Era chato, durou horas, eu não entendia nada, tinha gente que eu não conhecia, era tarde da noite. Levantei junto com uma guria do meu lado. Ninguém saía antes. Fiquei tão nervosa que toquei a campainha da casa. Foi um desastre total, pois a casa, teoricamente, estava vazia. Mas voltei outras vezes e comecei a militar.
Sul21 – Qual a tua trajetória como militante?
MRP – A minha trajetória militante foi o ingresso no PCB, em seguida a entrada na dissidência do RGS e depois a participação na fundação do POC; mais tarde foi a militância em Buenos Aires na sessão argentina da IV Internacional, o Partido Revolucionario de los Trabajadores até a prisão em 1975.
Também militei nos movimentos feministas francês e brasileiro no exílio.
“Quando me prenderam recuperei minha identidade”
Sul21 – A organização (PRT) não deu apoio no momento da prisão?
MRP – Não podiam dar muito apoio; podiam dar dinheiro, casa. Em 1975, quando fomos presos, estávamos sozinhos. Fiquei aliviada quando me prenderam, porque recuperei minha identidade, meu nome, minha nacionalidade. Voltei a ser o que eu era. Estive em duas prisões argentinas diferentes, melhores que as brasileiras, pois tinham mais organização. Por incrível que pareça, num país que não é escravocrata, quem cozinhava para a gente eram presos comuns. Enquanto que no Brasil quem cozinhava eram os presos políticos. A gente lavava a louça. Era a questão de ter ou não ter acesso a determinadas áreas. Tínhamos acesso às áreas de recreio e parte da cozinha para lavar a louça.
Sul21 – Na prisão argentina havia gente de todas as partes da América Latina. Como era a convivência?
MRP – Às vezes não era muito fácil. As correntes políticas dominantes eram a peronista e o PRT- Partido Revolucionário dos Trabalhadores, a única organização marxista grande naquele país. Elas mantinham a organização política em todas as prisões. Aos poucos, as organizações menores começaram a furar este cerco. Tudo era decidido em assembleias. A gente não estava nessa mesa. Mas furava o cerco e dizia que pensava diferente. Conseguimos compartilhar, por exemplo, a direção da prisão, em termos de dinheiro, de comida que recebíamos das visitas. Eram discussões homéricas para se decidir em que investiríamos, se em selo, papel higiênico etc. No Presídio de Devoto, em Buenos Aires, éramos 93 num pavilhão. Tínhamos que dividir uma barra de chocolate em montículos, saboreados com cafezinho. Na hora da leitura, como era um jornal por pavilhão, era um para 93 pessoas. Fazíamos trabalhos manuais para vender. A direção não queria que nos organizássemos. Tentaram nos manter em celas fechadas. Instintivamente todo mundo protestou, batendo na cela, pedindo para ir ao banheiro, inclusive crianças. E a direção mudou de ideia.
Sul21 – Quanto tempo estiveste presa? Como foi esta experiência?
MRP – Pouco mais de dois anos. Fui até a casa de uma pessoa que tinha sido presa e a polícia estava lá esperando por quem chegava. A primeira parte, quando fomos presos pela polícia, foi a pior. A tortura ocorre na delegacia de polícia. Tu estás à mercê deles, eles podem fazer qualquer coisa, se quiserem. Na prisão tu ficas resguardada de ser interrogada pela polícia de novo – de ser torturada, na verdade. As acusações eram por coisas específicas, mas não provavam nada. Demorou bastante a nossa ida ao juiz. Ele decretou minha soltura, porque não tinham nada para me culpar. Fui absolvida por falta de provas, assim como meu companheiro. Em seguida, as pessoas ficavam, então, à disposição do Poder Executivo nacional. E se este quisesse, nunca mais libertava as pessoas. Isso aconteceu com muita gente.
Sul21 – Como era a tortura nas delegacias?
MRP – Em geral todas as possibilidades, do estupro ao submarino, aos espancamentos, aos choques elétricos. Onde eu estava era mais a picana (máquina de choques).
“Fiz oito anos de análise para elaborar a tortura”
Sul21 – O que resta da tortura? Raiva, revolta?
MRP – Eu sei bem o que resta. Foi chocante ver pessoas com um comportamento bárbaro, aos gritos. Não é possível que essas coisas existam. O filme “Cidadão Boilesen” narra o prazer (que o empresário tinha) com isso, ele trazendo de presente (para a Oban) uma maquininha de tortura. Graças a Deus fiz oito anos de análise para elaborar isso, senão ficaria com uma raiva muito grande. Consegui elaborar, controlar essa raiva. Tanto que escrevo o livro sem marca de amargura.
Sul21 – Contas que muitos usavam o humor como forma de resistência na prisão. Funcionou?
MRP – Funcionou e bem. Ninguém enlouqueceu, e teve gente que passou por torturas medonhas (não foi meu caso). Conto sobre uma senhora com mais de 80 anos, super animada, sempre organizando coisas. Quando cheguei na França, vinda da Argentina, um jornalista da revista Elle quis me entrevistar. No começo de 1978, já havia montes de desaparecidos. Ele ficou brabo quando contei duas ou três histórias, e foi embora. Queria que eu contasse coisas horrorosas, mas eu estava imbuída daquele espírito de resistência coletiva na prisão. Apesar das ameaças, a gente nunca deu para trás – desde a questão das uniformes (as presas se negavam a usá-los).
Sul21 – Manténs contato com as antigas companheiras de prisão?
MRP – Sim. Na Argentina, aonde vou de vez em quando. Nossa prisão é o prato principal das conversas. Rimos muito, contamos histórias. É uma parte boa da minha vida. Meu melhor período da vida na Argentina foi na prisão. Muitas pessoas não entendem isso. Era eu com meu nome. Depois de ter vivido na clandestinidade, era legal, e a gente tinha relação de afeto muito grande (umas com as outras).
Sul – Como te livraste do medo?
MRP – Aquele medo passou, porque fiz análise. Se não, estaria frita. Esse medo tem consequência depois, na falta de sono, não conseguir dormir.
“Depois de uma larga peleia, conseguimos asilo político na França”
Sul21 – E na prisão, conseguias dormir?
MRP – Na prisão, sim. Não sobrava tempo para nada, havia aula de línguas, leituras, ginástica, aulas de alfabetização, oficina de trabalhos manuais onde todas tinham que participar, pois os produtos seriam vendidos. Uma companheira pedia para conversar e eu dizia: não dá, não tenho tempo. As comissões de familiares levavam os nossos produtos para vender. Com o dinheiro compravam o que precisávamos: selo para carta, cigarros, frutas… Aliás, foram essas comissões que levaram esse mundo de gente (militares, policiais, torturadores) aos tribunais para serem julgados.
Sul21 – Como foi a tua saída da prisão?
MRP – Como estrangeira, eu seria expulsa da Argentina. Depois de uma larga peleia, conseguimos asilo político na França. Minha então sogra, que era mulher de diplomata, ia atrás de um lugar para a gente ficar. Era fácil a Argélia, por exemplo, mas não quisemos ir. Algumas presas uruguaias foram para a Austrália. Depois do golpe na Argentina, finalmente, conseguimos asilo do governo francês. As leis da ONU proíbem ter atividade política no país, mas dá direito a documento de identidade, a trabalhar. Esse passaporte da ONU é para apátridas e refugiados.
Sul21 – Que lição tiraste do exílio? Do que sentia falta?
MRP– Da língua. Sofri muito por não poder falar português.
Sul21 – Como foi a vida na França? E por que voltaste só em 1992, sendo que a anistia foi em 1979?
MRP – Tu vais para um lugar em má situação, mas reconstrói a tua vida. Casei com um francês. Tinha minha vida lá, trabalho, amigos, minha casa. Fui sócia durante dez anos de uma cooperativa de produção gráfica. Voltei porque vi que era hora. Me preparei, acabou o casamento, fui fechando as coisas aos poucos para vir. Estava a fim de viver os últimos anos da minha mãe com ela, no Brasil.
Sul21 – Foi fácil se readaptar?
MRP – Desta vez, sim. Já tinha tentado outras vezes, indo para São Paulo. Na França, amigos organizavam festa de adeus e me davam de presente cada perfume maravilhoso! Dias depois, eu voltava. Até que não ganhei mais perfumes. E vim de vez. Fui morar em Viamão. Mas já estou pensando em sair dali.
“O Brasil ainda mantém as bárbaras leis de uma anistia incompleta”
Sul21 – O que achas da Lei da Anistia?
MRP – A anistia foi necessária para restabelecer o regime de direitos, permitindo a volta dos exilados e a restituição dos seus documentos. No entanto, ao contrário da Lei da Anistia, não há simetria entre torturados e torturadores. O Brasil é até agora o país da América Latina que ainda mantém as bárbaras leis de uma anistia incompleta.
Sul21- E a Comissão da Verdade?
MRP – É o máximo, pois um de seus objetivos foi mostrar o que era a ditadura neste país. Mas o que mais gostei na anistia foi terem me pedido desculpa pelo que tinha acontecido.
Sul21 – Tens convicção de que estavas numa luta política possível?
MRP – Houve um amplo movimento contra a ditadura que envolveu o conjunto da sociedade brasileira. Basta lembrar o peso que teve o movimento artístico-cultural daqueles anos contra o regime. A resistência contra a censura e a truculência policial se expressou no teatro, na música, no cinema, na imprensa alternativa, nos festivais artísticos reunindo milhares de espectadores país afora. Os militantes organizados foram parte disso, talvez o seu flanco mais frágil, o mais suscetível à repressão.
Acho que valeu a pena o conjunto da luta da sociedade brasileira. A aventura militar custou caro ao país, mas acabou se rendendo ao óbvio. Por mais defeitos que tenha, a democracia ainda é o regime que pode melhor defender os interesses da cidadania.
*Colaborou Nubia Silveira
Uma prova de “Volto Semana que vem”:
1976 – Revista em Olmos
Na escadaria que vinha do pátio ouviam-se muitas vozes, o som dos coturnos batendo no piso de lajotas. Havia uma tensão especial naqueles ruídos. Ficamos alertas. As portas de grade que permitiam o acesso ao corredor do pavilhão das presas foram abertas e todas saímos das celas ainda mornas de sono. Empertigados ao lado das celas, homens de uniforme seguravam cães policiais. Alguém ordenou que fôssemos para o pátio, passando pelos guardas e os animais. O som das botas contra as lajotas do piso recebia o reforço dos corações amedrontados. A descida durou pouco. Dos janelões da escada, víamos as presas dos outros pavilhões ocupando o pátio como manchas coloridas. Mas foi apenas quando sentimos a luz do sol na grande área lajeada é que nos demos conta de que havia militares armados nos telhados. Saber que se tratava de intimidação não aliviava o medo. Nunca avisavam o que fariam conosco.
Quando retornamos às celas, lençóis e colchões estavam espalhados pelo corredor, livros e jornais deixavam um rastro de páginas soltas, a erva-mate que saía dos sacos despedaçados formava um rego no piso. O cheiro acre dos animais pairava no ar. Quase em silêncio, dispusemos as mesas para o almoço na parte limpa do corredor.
Quando os panelões chegaram, o perfume do manjericão que subia do puchero anunciava o presente das presas “comuns” às companheiras menos afortunadas.
Vizinhos assim são raros.
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