Milton Ribeiro
Gustavo Melo Czekster é um homem que escreve. Passa seus dias escrevendo petições, recursos e ações e, ao chegar em casa, segue escrevendo contos, ensaios, romances. Como revelou aqui, escreve até dormindo. Teve que afastar o celular de si porque respondia dormindo às perguntas que lhe faziam nas redes sociais e, ao acordar, não lembrava de nada. Chegou a revisar textos dos quais não sabia uma palavra ao acordar.
Publicou dois livros de contos muito elogiados: O Homem Despedaçado, em 2011, e Não há amanhã, em março deste ano. Suas obras completas estão em computadores e em oito caixas de papelão que, segundo ele, estão cheias de insetos e ignomínias. Já prepara seu primeiro romance, que será sobre a grande violoncelista inglesa Jacqueline du Pré, cuja carreira foi tragicamente abreviada em razão da esclerose múltipla que a forçou deixar os palcos aos vinte e oito anos de idade.
Na entrevista que ele concedeu ao Guia21 no Bar Chopp Tuim, falou sobre seu segundo livro, sobre os dias que correm, a posição da literatura e da cultura no Brasil e sobre o pintou na conversa.
Guia21 — Comecemos pelo teu livro Não há amanhã. Há quanto tempo foi lançado e como tem sido a recepção?
Gustavo Melo Czekster — O livro foi lançado há seis meses e a recepção tem me surpreendido favoravelmente. As pessoas reclamam da fuga dos leitores, mas talvez o que esteja faltando seja escritores contando boas histórias. Tento fazer isso em meu livro. Também me surpreende a forma com que as pessoas têm interagido comigo. Muitos mandam mensagens com impressões e comentários. As redes sociais ajudam nisso, claro. Da minha perspectiva, a melhor parte de escrever é ver que nosso trabalho não é lido com indiferença. Vi exemplares do Não há amanhã bastante anotados. Claro que fiquei feliz.
Guia21 — Não há amanhã não é um livro fácil.
Gustavo Melo Czekster — Não, não é fácil e as pessoas parecem desafiadas a apresentarem interpretações para algumas das histórias. É muito interessante porque algumas vezes o que é comentado não passou pela minha cabeça, mas deve estar ali de alguma forma. Posso dizer que recebi leituras atentas.
Guia21 — São 30 contos no Não há amanhã. Apesar da variedade de temas há uma grande unidade. Como foi escrito?
Gustavo Melo Czekster — Quando eu planejei o livro, logo pensei: meu tema será o sentido. “O Homem Despedaçado” fora sobre a fragmentação humana — ou seja, sobre quantas pessoas existem dentro de nós mesmos — e agora meu tema será o sentido, que é um conceito com vários usos e significados. Aliás, o nome do livro era “O Sentido”. Quando fui pesquisar na filosofia, vi que o sentido é sempre associado a algo, o sentido da vida, da morte, etc. O único autor que chegou mais perto do sentido como conceito puro foi Camus em O Mito de Sísifo. É o homem em busca de sentido diante de um mundo ininteligível, sem Deus e eternidade. Ele fala sobre o absurdo de pensar que a vida teria um sentido e que a única decisão efetivamente livre seria a dar cabo da própria vida. Mas o nome do livro foi alterado porque vários colegas acharam o título ridículo. Me avacalharam. Disseram que parecia autoajuda e que não era marcante. Então, voltei para casa, folheei Camus e encontrei a frase que diz que “O absurdo me esclarece o seguinte ponto: não há amanhã.” E então escolhi Não há amanhã. Ficou meio Sidney Sheldon, “Se houvesse amanhã”.
Guia21 — Gostei também de “O Sentido”, mas voltemos a um ponto inicial. Tu disseste que as pessoas têm lido Não há amanhã porque há poucas pessoas contando histórias.
Gustavo Melo Czekster — Sim, o que te leva a ler um livro de ficção? Ora, tu compra porque quer ler uma boa história. Afinal de contas, é isso que atrai na literatura em prosa desde que começamos a ler, só que hoje há uma curiosa massificação. Parece que os 6 ou 7 principais editores do país se reúnem periodicamente e decidem o que as leitores desejam ler. E então todos os livros saem mais ou menos iguais. Hoje, na minha opinião, a literatura mais excitante é aquela que está sendo publicada fora das grandes editoras. Porém, como as grandes se impõem junto ao público, as boas histórias, as coisas realmente diferentes, as coisas que prendem o leitor, estão fazendo falta. Há livros contemporâneos que a gente lê e depois pensa: o que eu acabei de ler? Que sentido tem isso? E o resultado é que a gente esquece logo. Quando alguém vai contar sobre o que leu, tem dificuldade para fazer um resumo em poucas frases… Normalmente as capas são maravilhosas, na maioria das vezes são livros bem escritos, mas que não nos dão a sensação de estarmos melhores ou piores com o livro, é puro entretenimento, falta interiorização. Alguns escritores querem o preto e o branco, certo e errado, sem ver que a realidade é nebulosa, que há uma zona cinza escura e outra cinza mais clara. Outra coisa que tem prejudicado a produção atual é a autocensura. A originalidade da história entra pelo ralo porque o escritor tem medo do que o pai e a mãe vão pensar, do que as feministas vão pensar, do que os deficientes e os políticos de todos os gêneros vão pensar. Isso é um crime contra a criatividade. Eu acho que temos que ser fiéis às nossas histórias mesmo que elas possam ofender alguém, mesmo que ninguém a leia. Acho que a voz autêntica é a única que pode devolver algo ao autor.
Guia21 — Falta sentido ou falta contar histórias?
Gustavo Melo Czekster — As duas coisas. Falta a sensação de imanência da arte. Por exemplo, Balzac nos envolve pela humanidade, sinceridade, pela história. Veja Anna Kariênina. Há uma certa perversidade na história que, bem, poderia acontecer conosco… O livro verbaliza coisas que talvez alguns de nós tenham vergonha de verbalizar. Eu poderia ser Kariênina em outras circunstâncias, em outro mundo. Hoje é difícil construir esta empatia com os personagens que são criados. Há uma postura blasé que diz que o autor não deve se envolver tanto com o personagem. Parece que os autores têm receio de mostrar muito de si em suas criações. Não há o pensamento de que o personagem é outra vida.
Guia21 — E temos boa literatura sendo produzida?
Gustavo Melo Czekster — Certamente, mas como disse, a boa literatura está correndo por fora, à margem. Por exemplo, os romances que são premiados não refletem a diversidade e a qualidade da literatura atual. É curioso: os grandes editores querem romances, dando absoluta preferência aos de detetive, aos de dragões ou aos de senhoras de 50 anos que descobrem o sexo. Um editor me disse isso uma vez e eu brinquei com a ideia de escrever um romance com detetives, dragões e senhoras recém liberadas. Seria um arraso. (risadas)
Guia21 — Com todas esta limitações…
Gustavo Melo Czekster — Sim, o patrulhamento. O pior patrulhamento nem é o da sociedade, mas aquele que é autoimposto ou que tenta se agregar a modas. A história pede um personagem X, mas o escritor usa um transsexual porque quer ser atual. Há também uma coisa forçada que impede vilões negros ou vilãs, por exemplo. O autor receia críticas do tipo “Quem tu pensa que é para dizer isso?” Não há desligamento do autor destes arquétipos, ele os procura para ser melhor aceito. Li recentemente um livro onde havia um relacionamento de 5 páginas entre duas mulheres. Não há problema nisso, só que não se sabe porque chegamos ali nem porque foi abandonado subitamente. Ou seja, o escritor forçou a barra e a excrescência não contribuiu para o que interessa, que é contar uma história, que é o motivo pelo qual o leitor está na frente do livro.
Guia21 — Os escritores também têm medo de outras coisas, como de não serem chamados para eventos…
Gustavo Melo Czekster — Certa vez, contestei a forma de organização de um concurso. Vieram pessoas inbox me parabenizar pela coragem, mas dizendo que eu não esperasse ganhar prêmios… Bem, eu não escrevo pela possibilidade de prêmios. Até me sentiria tolhido se tivesse uma meta dessas. E, ademais, as pessoas simplesmente esquecem de quem ganhou. Tu lembra quem ganhou o Açorianos no ano passado?
Guia21 — Não. Sei que eu ganhei em 2012 ou 13 um e ninguém sabe dele.
Gustavo Melo Czekster — (Risadas) Noto que pouca gente reclama, pouca gente protesta. Todos querem ser bonzinhos. Isso é muito de nossa época. Quase todos querem convites para feiras, para financiamento de livros, quase todos querem ver o governo comprando seus livros infantis, etc. E então o escritor não pode isso nem aquilo. Isto limita a literatura. Eu tenho a sorte de não viver da literatura. É uma sorte. Eu não preciso me comportar, não preciso colocar a última e mais atual pregação ideológica na obra para vender — não que isso funcione… Hoje, por exemplo, é muito difícil escolher um livro infantil. Dia desses fui dar um presente para uma criança e conferi o fato de que há muitos livros que, em resumo, eram a manipulação de uma história para agregar posicionamentos e não para contar uma história autêntica. Acabei nos clássicos.
Guia21 — Depois de Roald Dahl tem pouca coisa efetivamente interessante. Os personagens são ruins porque são ruins em razão de um trauma, coitados. Ninguém é ruim quis fazer uma maldade. Há medo da história?
Gustavo Melo Czekster — Sim, é como o cavalo que refuga um salto numa competição de hipismo. Muitas vezes estou lendo uma história e sinto que tal coisa vai acontecer. Então vem um balde de água fria. Há o medo de desagradar, o escritor passa a evitar sutilmente certas palavras. Já vi discussões de casal onde ambos evitavam palavras pesadas… Às vezes sabemos que o personagem deve se encaminhar para um destino, que aquilo vai acontecer, que ele vai descobrir algo, vai abrir uma porta, mas o autor segura e decide ficar no comando. Ele pensa “isso é muito sombrio para meu personagem”. O sistema de causa e efeito é quebrado. Voltemos à Anna Kariênina: se ela quisesse ser boazinha o livro não seria a obra-prima que é. Mas ela é apaixonante, vai se afundando e afundando. Imagina se Tolstói resolvesse que Anna voltasse atrás para ser uma boa mãe?
Guia21 — Por falar em censura e autocensura, o que tu achaste sobre o episódio do Queermuseu?
Gustavo Melo Czekster — Eu fui na exposição. Não tinha quase ninguém, nem seguranças em torno. Ela não me cativou nem escandalizou. Acho Caravaggio mais ousado. Também não encontrei pedofilia, nada. As pessoas veem o que querem ver. Eu não vou procurar obras de arte como comprovações de minhas teses. Quem viu escândalo estava procurando escândalo. Como é que as pessoas procuram isso? Por quê? O que eu vi foi uma desconstrução de várias imagens, mas jamais zoofilia, pedofilia, etc. Há duas semanas fui denunciado por pornografia pelo administrador de uma rede social porque postei uma pintura de Cézanne onde uma mulher amamentava seu filho. O outro seio aparecia nu. Ou seja, há o crescimento de um conservadorismo torto que é inclusive auxiliado pelas redes sociais. Nós já temos censura. E isso pode invadir a literatura. Por outro lado, chocar por chocar, escandalizar por escandalizar, envolvendo às vezes gratuitamente poder, sexo ou religião, é inútil. A arte tem que ter um objetivo. Por exemplo, Caravaggio usava prostitutas e mendigos para mostrar que aquilo existia. Acho que falta uma ideia além da provocação. Voltando à pergunta. acho que o Santander teve uma reação desproporcional e eu gostaria que os quadros fossem apresentados em outro espaços. Mas a mentalidade conservadora está se inserindo entre as pessoas mais jovens e vem subindo. A nova geração está chegando mais engessada, certinha, contida, sem ironia e isso gera conservadorismo.
Guia21 — Na época do lançamento de Tristram Shandy, os jovens eram mais conservadores que os velhos.
Gustavo Melo Czekster — Tristram Shandy é um livraço! Na época de Sterne, na Inglaterra, o mundo não estava, digamos, evoluindo. É o que ocorre também agora, estamos voltando no tempo. A pessoas estão usando palavras bélicas, ferozes, que buscam o confronto. São raros os ponderados, os que evitam as meras dualidades, buscando entender a complexidade do que acontece. Ninguém respeita professores, intelectuais, artistas, escritores, ninguém, é tudo no grito. O pessoal simplesmente não quer saber. Fico pasmo quando leio notícias de professores sendo agredidos — para mim, o professor não tem pele e osso para ser agredido.
Guia21 — Indo para o lado pessoal, qual é a tua formação?
Gustavo Melo Czekster — Eu sou advogado, mas meu mestrado foi em Letras, o que foi uma confusão porque existem termos comuns ao Direito e à área de Letras, com significados diferentes. Na época da dissertação, eu fiz uma lista de palavras que não poderia dizer de modo nenhum. Por exemplo, no Direito, a palavra “representação” tem um significado bem simples, porém, se eu utilizasse a palavra na área da Literatura, cairia num buraco negro teórico. No Direito, eu represento a parte X, eu a defendo, estou lado a lado, nas Letras eu substituo a parte. E, pior, desde Aristóteles se discute este segundo conceito de representação.
Guia21 — Tu dormes muito pouco, né?
Gustavo Melo Czekster — Eu tenho dificuldade crônica para dormir. Consigo descansar, repouso e passo bem o dia, mas acordo muito cedo. Às 3h30, 4h, eu já estou acordando. Vou ler, escrever, vejo filmes, às vezes quero sair, mas aí tenho receio não porque a noite está chegando, mas porque ela ainda não acabou. E devo ter um leve sonambulismo. Já respondi dormindo e por escrito coisas no celular. Ainda bem que com coerência e sentido. Hoje durmo com ele bem longe. Às vezes, as pessoas me agradeciam por respostas a coisas que não lembrava de ter lido e muito menos respondido. Era sempre um susto, mas vi que respondo educadamente, com sujeito, verbo e predicado. Parece até ser eu escrevendo… Provavelmente, ouço o sinal do celular e respondo dormindo. Tive que afastá-lo da cama. Esses dias cheguei a revisar um texto que me mandaram, dormindo. Bem, mas acordo muito cedo e às vezes vou para o Parque da Redenção quase de madrugada. Conheço os mendigos de lá, eles acham que sou um deles. Já tomei quentão de madrugada com eles. Eles têm grandes histórias para contar. Gosto muito de ouvi-los.
Guia21 — E os próximos planos?
Gustavo Melo Czekster — Estou escrevendo um romance sobre a violoncelista Jacqueline du Pré e o Concerto de Elgar. Sou fascinado pelo concerto e pela biografia de du Pré, além da ironia macabra da esclerose múltipla. Estou estudando um pouco mais de música para enfrentar o tema. O livro se passa durante uma execução do concerto de Elgar.
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