Gabriela Silva
Sempre gostei de Fernando Pessoa, tive com ele vários casos amorosos por temporadas. É um amor intermitente e renovável. Havia, assim como ele mesmo sabe, uma pluralidade de sua poesia na minha vida cotidiana. Vivíamos nos encontrando. Era coisa de casualidade e coincidência: se me chamavam para falar de poesia, era ele; caso fosse para falar de literatura portuguesa, lá vinha ele de novo. Acostumei-me a sua presença, quase como Ricardo Reis se acostumou em O ano da morte de Ricardo Reis. É uma estranha companhia, intangível, mas que me ajuda a entender muito do que espero da vida.
E esse ano tem sido um tempo pessoano para mim. Temos nos encontrado quase que diariamente, conversamos sobre o que eu tenho entendido de sua poesia nos últimos anos. Fernando Pessoa pode ser um excelente conselheiro, basta que prestemos atenção ao que ele nos diz. Além das metáforas, das alegorias, dos símbolos e das diferentes vozes que dele foram para o mundo, há em cada verso um significado único. Por vezes penso no poeta português como um oráculo a me responder o que eu ainda não proferi como pergunta.
E hoje para escrever sobre ele, pensei em falar sobre as cartas de amor. Numa aula sobre Fernando Pessoa, falamos das cartas trocadas entre ele e Ofélia. É uma vasta correspondência, que compreende um período de tempo longo. As cartas estão repletas de singularidades das suas vidas cotidianas, do tempo vivido por eles e do sentimento, não sei ao certo se amor, mas de uma gentil e sensível delicadeza que muitas vezes nos faz rir, por pensar que o taciturno Pessoa pudesse escrever palavras tão cheias de carinhos e mimos à menina Ofélia.
E assim, como no verso do poema de Álvaro de Campos, “Todas as cartas de amor são ridículas” essas cartas também o são. Mas onde reside o ridículo? Na medida que nos expomos de uma forma quase nascitura na escrita dessas cartas. Dividimos um vocabulário único, um código pessoal usado de uma forma completamente deliberada e nos sentimos deuses no Olimpo desses universos.
Cada carta escrita traz em si muito do que desejamos, dessa necessidade de tornar tangível o que apenas em ideias nos toma o tempo diário. E o que Fernando Pessoa faz nessas cartas é materialidade do que ele poderia ter sido como sujeito amoroso, é um afeto e um amor que nos aproxima em fraternidade, mais ainda do que em vontade sexual. As palavras assumem dimensões maiores do que as sílabas que as compõem e as frases tornam-se quase um caminho que nossos pés podem caminhar.
Lembro de algumas cartas de amor que penso serem mesmo fantásticas, e nem um pouco ridículas. As cartas de amor de Viktor Chklovsky e a escritora franco russa Elsa Triolet, falam de tantas coisas das suas vidas, sobre trabalho, escrita, processos de criação, guerra, solidão e todos os desencontros que compunham seu relacionamento nunca assumido, mas densamente experienciado nas cartas. Chklovksy era um dos teóricos do formalismo russo, que pensava a literatura como um espaço das formas, das estruturas e não da psiquê ou do social. Durante seu exílio em Berlim, na década de 1920 ele escreve Zoo, ou cartas de não amor, um romance epistolar baseado nas cartas escritas à Elsa. A certa altura de uma das cartas, a personagem Ayla, desgastada com o amor do correspondente pede que ele escreva sobre tudo, mas não sobre o amor. Ele então desvela-se, multiplica-se em comentários e reflexões sobre várias coisas, para que num processo de proximidade pudesse falar do amor que sentia por ela. São cartas que não devem dizer o que querem dizer. Fala até mesmo do zoológico perto de onde era sua casa e nas descrições fala de uma maneira sutil da convivência, e do próprio amor.
Uma outra carta de amor que lembro sempre é a de Mr. Darcy à Elizabeth Bennet em Orgulho e Preconceito de Jane Austen. Uma carta escrita com o “coração na ponta da pena” como se pode dizer, usando o ditado comum. Darcy escreve sobre como toda a sequência de acontecimentos levou-os ao afastamento. Ele, o orgulhoso Mr. Darcy e ela a irredutível Lizzie Bennet nutriam os mais sinceros e bonitos sentimentos um pelo outro. A dignidade de Darcy em reconhecer sua postura, a ousadia de abrir sua própria caixa de Pandora e mostrar seus medos, orgulhos e receios como base para mostrar também seu afeto. Lizzie também lhe escreve confessando uma cegueira que não era proposital, mas que a impediu de ver os gestos generosos de seu correspondente e a maneira como a seu modo, Darcy mostrara-se digno de sua afeição: “Mas não pude manter essa posição por muito tempo. Tudo estava um verdadeiro caos em minha mente. Resisti por tanto tempo a esse sentimento, não sei ao certo o porquê. Talvez por conta de meu orgulho ou vaidade… Quem vai saber?” A cartas dos dois funcionam como uma descrição das suas próprias histórias, com cada gesto, ideia e proporção do efeito desses gestos em suas vidas. Alinham-se no final, não por que é uma fábula romanesca que merece o inevitável final feliz, mas por que são personagens de um caráter que nos comove e que nos conquistam como seus defensores e fãs.
E também as Cartas portuguesas de Soror Mariana Alcoforado, uma freira portuguesa que escreve cartas ao oficial francês por quem era apaixonada. Publicadas em francês no ano de 1669, as cartas tratam do amor incondicional da jovem pelo oficial e vão aos poucos tornando-se tristes, melancólicas pela impossibilidade do encontro. Em sua cartas ela pedia demonstrações de amor, afetuosas e que atenuassem a sensação de solidão que ela sentia. Passionais, com ares barrocos, as cartas eram as palavras de um sujeito repleto de sentimento de abandono e esquecimento. E mais, ela fala que queria a ilusão, a ideia de um amor possível, que em nada a sinceridade dele ao preteri-la a ajudava, ao contrário afastava-a do sonho, do devaneio de felicidade enclausurado no convento e que nas cartas ambicionava a liberdade e o amor: “Detesto a sua sinceridade! Acaso lhe tinha pedido que me dissesse sinceramente a verdade? Por que não me deixou a minha paixão? Tudo o que tinha a fazer era não me escrever: eu não procurava ser esclarecida.”
Então eu lembro de Roland Barthes e dos Fragmentos de um discurso amoroso, em que ele comenta que precisamos de um interlocutor, de alguém que receba nossas palavras. Escrevemos por que pensamos nesse leitor/leitora das nossas cartas, poemas, textos de amor. É nossa inspiração, mais do que viver, experienciar no mundo das coisas, esse sentimento. É a possibilidade dele, projetado, pensado e articulado em palavras que o torna tão interessante. Escrevemos para que saibamos nós mesmos que podemos expressar o que sentimos, que somos feitos também de palavras e de linguagem, de ritmo, de fusão entre sonho e escrita. Escrever uma carta de amor é fantasiar “o que é empiricamente impossível” como diz Barthes, e nos cansamos até a exaustão para tentar convencer ou mostrar a outro sujeito o nosso amor.
Em o Banquete, Platão fala das almas gêmeas, dos complementares. Penso assim, quando escrevo sobre cartas de amor, por que quem as escreve acredita estar fazendo isso para um leitor especial, o seu leitor, a parte ainda distante que a complementa. De alguma forma, autor e leitor são essas duas partes.
“Todas as cartas de amor são ridículas” e urgentes, necessárias, únicas. Estão na história dos homens e mulheres de todos os tempos, estão nos livros, tornaram-se poemas, canções ou permaneceram cartas mesmo. Linhas e linhas de desejo amoroso, de constante ansiedade pelo encontro.
Conversando sobre esse texto, enquanto o escrevia, com minha amiga Alexandra Lopes da Cunha, ficcionista e poeta, ela me disse: “Onde mais Pessoa viveria o amor senão nas palavras, se ele mesmo era feito de palavras?”. Tens razão Alexandra, e em todas as palavras deixadas por Pessoa, o amor nas cartas para Ofélia, é apenas um pouco do que ele foi e que intencionalmente nos deixou na sua poesia. A alma que abrange tudo o possível, não sendo ela pequena, carrega em si mesma a eternidade. Pessoa é todos os tempos e todas as palavras, de forma singular ou plural, materializa-se e permanece.
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Gabriela Silva é formada em Letras, especialista em Literatura Brasileira (2003),Formação de Leitores (2005), mestre (2009) e doutora (2013) em Teoria da Literatura pela PUCRS, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Antonio de Assis Brasil. É professora de literatura e escrita criativa nos gêneros poético e narrativo. Atualmente realiza pesquisa de pós-doutorado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa no Centro de Estudos Comparatistas.
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