Fernando Molica cria personagem que reflete sobre os dilemas éticos, políticos e amorosos no Brasil contemporâneo

Foto: Divulgação
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Sozinho em pleno voo, enquanto viaja entre dois continentes, um jornalista carioca se ocupa de escrever uma carta. A destinatária é Eloísa, ex-namorada e ex-chefe, poderosa assessora política. Enquanto desbrava a personalidade e a trajetória da mulher, o protagonista de Uma selfie com Lenin passa em revista a própria jornada, desde que era um repórter mal remunerado até se converter em redator a serviço de políticos de caráter duvidoso. Na missiva, há espaço ainda para ecos de notícias do Brasil, como as manifestações de 2013 e 2014 e o desencanto com o projeto de esquerda para o país.

Com um viés ao mesmo tempo melancólico e irônico, Fernando Molica desvela conflitos éticos e dilemas que marcam a rotina contemporânea, elaborando uma crítica perturbadora de nossa sociedade — da política ao amor. Redige uma trama ágil e original, que tem como ponto de partida a história de um romance turbulento e de uma decisão inusitada: desaparecer. Com isso, também apresenta um saboroso tratado sobre poder e injustiça, memória e esquecimento, desejo e perplexidade. Ou, como afirmou em entrevista, parafraseando a canção: sobre as pequenas dores que se avolumam, o tipo de dor que, tão da gente, “não sai no jornal”. Uma selfie com Lenin chega às livrarias no fim de março, pela Record.

Fernando Molica é autor dos romances Notícias do Mirandão, O ponto da partida e O inventário de Julio Reis(publicados pela Record), Bandeira negra, amor e o infanto-juvenil O misterioso craque da Vila Belmira. Notícias do Mirandão e Bandeira negra, amor foram publicados também na Alemanha. Lançou ainda o livro-reportagem O homem que morreu três vezes (Record), que recebeu menção honrosa do Prêmio Vladimir Herzog. Dois de seus livros foram lançados na Alemanha. Foi, por duas vezes, finalista do Prêmio Jabuti. Jornalista, assina uma coluna diária no jornal O Dia.

TRECHO:

“Acordei com o dia claro, envolto em lençóis úmidos, manchados pelo sangue que saíra da minha perna. Doía um pouco. Levantei, catei as roupas no chão, joguei tudo no box e tive, enfim, coragem de me ver no espelho. Eu envelhecera, Eloísa. Ao revelar o caso com aquele outro filho da puta da assessoria, ao deixar a taça sobre a pia, ao beijar de leve minha boca e ao sair de casa, Amanda sancionara  a minha velhice. Ela, durante aqueles poucos meses, mentira para mim, dissera que eu era jovem. Isso, não com palavras, mas com sua presença, com seu corpo, com seu gozo. Ela retirara cabelos brancos de minha cabeça, gordura de minha barriga, uma ou outra dobra no meu pescoço. Durante todo aquele tempo, eu só me via nela, me achava contaminado por ela. Ao largar a taça, ao dar o selinho, ao sair e fechar a porta, ela quebrou a magia, me devolveu à condição de abóbora. Mais do que me plantar um chifre na testa, ela me esfregou minha própria idade na cara.”