Exagero, fingimento e mentira — ou a literatura não presta!

Foto: Alceu Chiesorin Nunes
Foto: Alceu Chiesorin Nunes

Por Luiz Schwarcz, no blog da Companhia das Letras

As famosas frases de Flaubert e de Fernando Pessoa, que já citei nesses meus posts, aqui são verdadeiras defesas da literatura como mentira. Dostoiévski, o escritor que só escrevia sobre as mais sombrias profundezas da alma humana e mesmo assim dizia acreditar que “a beleza salvaria o mundo”, era também um grande ideólogo da mentira literária. Segundo ele, “A mentira é o único privilégio do homem sobre todos os animais”.

Fingimento ou exagero, mentira ou autoengano, a literatura se utiliza de uma série de componentes que na vida real são malvistos ou tidos como falhas morais — mais ainda, falhas de caráter. Assim, se na vida procuramos uma identidade própria, na literatura fugimos dela. Se na vida devemos ser honestos e comedidos, na literatura o exagero e a dissimulação em muitos casos valem tanto ou mais do que a precisão.

O melhor exemplo que me ocorre de um escritor que usa o exagero como recurso primordial é o austríaco Thomas Bernhard. Sua literatura é filha da raiva, não permite contenção. Como escritor, lhe cabe melhor a distorção — mesmo em meio a uma prosa realista — do que a exatidão. Em um conjunto memorável de livros de memórias, publicado pela Companhia das Letras em um só volume sob o título Origem, o autor já de cara, no primeiro parágrafo, apresenta-se claramente exagerado. Conta que aos oito anos de idade montou pela primeira vez numa bicicleta do seu tutor e, sem nunca ter aprendido a pedalar e sem pedir autorização, foi sozinho até Salzburg, a trinta quilômetros de onde morava. O roubo da bicicleta do padrasto e a implausível fuga de trinta quilômetros, logo no primeiro dia que o protagonista aprendeu a pedalar, é fundamental para marcar o início de uma vida de transgressões, na qual o narrador se apresenta deslocado socialmente, o tempo todo. Bernhard se mostra quase ausente do mundo, em tudo o que escreve. Mesmo sendo ele mesmo seu grande personagem, a pacata realidade austríaca não cabe em seus escritos, em que encontramos apenas o seu ser exagerado. Algumas páginas depois da sua fuga, tendo chegado à casa de um colega, ele passa a descrever o que seria, na verdade, o seu primeiro ato como narrador. Fala de si, aos oito anos, contando a um terceiro o feito do roubo da bicicleta, com as seguintes palavras: “fiz a ele um relato absolutamente dramático, o qual, eu estava convencido, só podia ser considerado uma bem-acabada obra de arte, embora não houvesse nenhuma dúvida de que se tratava de acontecimentos e fatos reais. Nos pontos que me pareciam mais favoráveis detive-me um pouco mais, reforçando um aspecto, atenuando outro, sempre visando o ápice da história toda, sem antecipar nenhum momento culminante e, de resto, sem perder de vista meu papel central naquele meu poema dramático”. Mais à frente, no mesmo conjunto de livros, Bernhard se qualificará como um encrenqueiro: “tudo o que escrevo, tudo que faço é perturbação e irritação”. E continua: “Queremos dizer a verdade e, no entanto, não dizemos a verdade […] do ponto de vista lógico, a verdade que conhecemos é a mentira que, incapazes que somos de contorná-la, se faz verdade […]. Em toda nossa existência de leitores, jamais lemos uma verdade, ainda que com frequência sejam fatos as coisas que lemos. O que lemos é, pois, invariavelmente a mentira como verdade, a verdade como mentira etc.”.

Escolhendo sempre em sua vida opções distantes das esperadas socialmente, o escritor austríaco apresenta-se como um fugitivo e assim aproveita para caracterizar a espécie humana e, mais particularmente, os escritores e artistas, que transformam a vida num teatro. Prometo parar com as citações por aqui, mas permitam-me ainda uma última. Bernhard escreve: “De que servem as cartas que um louco tem na mão, ainda que ele não afirme não ser louco? Toda criança é sempre um diretor teatral, e eu fui desde muito cedo um diretor de teatro. Primeiro encenei uma completa tragédia; depois uma comédia; em seguida, outra tragédia, até que o teatro se misturou, já não é possível reconhecer se se trata de tragédia ou comédia […]. Estamos sempre à frente de nós mesmos e não sabemos se devemos aplaudir ou não […]. O teatro, no verdadeiro sentido da palavra, foi nosso ponto de partida. A natureza é o teatro em si. E nessa natureza que é o teatro em si os seres humanos são os atores, dos quais já não há de esperar muito”.

Mas se a ficção precisa da liberdade do exagero, ela só é bem-sucedida se criar uma distorção, ou um teatro, coerente, do começo ao fim. Além da representação, ou do fingimento, a distorção na verdade pode ser uma boa definição da prática mais usual dos escritores. Mas ela só ocorre no princípio, ou por princípio. Uma vez realizado o salto para a situação imaginada, uma segunda distorção ganha ares de pecado, incoerência ou de inconsistência. Ao entrar na fantasia, tudo o que o escritor precisa fazer é seguir coerente, vivendo integralmente o que imaginou, até o ponto final do romance. Mentir com convicção, fingir com propriedade, e até o fim. Ao editor cabe avaliar principalmente a integridade da dissimulação, ser um juiz feroz da coerência da boa mentira. No fundo, somos meros fiscais do fingimento, o que, diga-se de passagem, nem sempre é tarefa fácil. No nosso dia a dia não entra em discussão se as narrativas ficcionais ou até mesmo memorialísticas são falsas ou não, mas sim se a falsidade se sustenta com propriedade até o final. O curioso é que muitas vezes a realidade parece ser até mais implausível do que a ficção. O próprio Dostoiévski, que aqui já foi apresentado como o ideólogo tanto da beleza como da mentira, parece certa vez ter afirmado: “A verdadeira verdade é sempre inverossímil”.

Sou um escritor menor, mas permitam-me, mesmo assim, usar exemplos próprios para ilustrar o que quero dizer. Certa feita, tomei um avião para Lisboa onde deveria fazer um breve discurso por ocasião do lançamento de Ensaio sobre e lucidez de José Saramago. O avião tardava a sair, e uma movimentação cada vez mais crescente entre os comissários de voo começou a se fazer notar. Depois de certo tempo soubemos que um passageiro com Alzheimer estava sozinho no avião e, ao ouvir o anúncio de que o avião iria para Lisboa, pediu para sair, pois o seu destino era a cidade de Faro. Muito tempo foi perdido, enquanto se tentava explicar ao passageiro que não havia voos diretos para Faro. As aeromoças perguntavam, com jeito, se ele sabia de alguém que o aguardava em Lisboa, ou sobre quem o havia trazido ao aeroporto em São Paulo.

Criou-se um impasse a respeito do que fazer com o passageiro; se ele devia permanecer no avião ou desembarcar ali mesmo, pois não havia nenhuma indicação da pessoa que iria apanhá-lo ou orientá-lo em qualquer das cidades. Enquanto a dúvida sobre o destino do passageiro desmemoriado persistia, vi entrar um grupo de paramédicos, dirigindo-se à cabine de comando e de lá sair com um dos copilotos numa maca; ele tinha sofrido um enfarte. Talvez a falta de memória do passageiro tenha salvado a vida do piloto, que pôde ser atendido ainda em terra.

Tão logo o avião saiu, sem o copiloto e sem o velho com Alzheimer a bordo, eu, que havia guardado a tarefa de anotar o que iria falar em Lisboa — como sempre de última hora —, posterguei mais uma vez minha obrigação e coloquei-me a anotar pontos para um possível romance. Marcado pelos acontecimentos que presenciara, eu já tinha um bom começo para o meu “primeiro romance”: um passageiro com Alzheimer sozinho dentro de um avião. O tempo, porém, mostrou-me não só que não tenho a capacidade para escrever romances, mas também que, mesmo em um conto, a história não poderia ser narrada por completo. Publiquei-a no livro Linguagem de sinais, que abre com essa história. Tive que tirar do texto final o episódio do enfarte do copiloto e o heroísmo involuntário do senhor com Alzheimer. Transportada para a ficção, a realidade pareceria totalmente implausível.

Para construir a ficção, o escritor precisa se ausentar desde o princípio. Mesmo o mais realista dos autores foge da realidade para descrevê-la. Senta em frente a um teclado, ou com seu caderno de anotações, e se distrai por completo, aliena-se do mundo que o cerca, talvez até para melhor compreendê-lo. Ou simplesmente para criar outra realidade, diversa. No caminho dessa alienação há ainda muitos outros pecados: a dissimulação da ignorância, o egocentrismo da própria literatura que se exibe o tempo todo, mesmo que à revelia do autor e até a tal ausência que, em essência, não dignifica o homem. É tanta maldade para uma só profissão que terei de guardar espaço para um próximo post. Meu Deus, a literatura de fato não presta!

*Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros. Escreve pra o blog uma coluna semanal sobre livros e o trabalho editorial.