Entrevista com Paulo Visentini, autor de “Os paradoxos da Revolução Russa – ascensão e queda do socialismo soviético (1917-1991)”

Jacira Cabral da Silveira

Há um século, a massa operária e os camponeses russos, sob a liderança de Lênin, tomaram o poder, abolindo a monarquia czarista e implantando um regime de governo baseado em ideias socialistas. A Revolução Russa de 1917 torna-se assim a mais impactante da história por seu alcance mundial e por sua duração (74 anos), “pois foi um elemento catalisador de todo o século XX”, afirma o cientista político e professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS, Paulo Visentini, que lançou este ano a obra Os paradoxos da Revolução Russa – ascensão e queda do socialismo soviético (1917-1991). Ao retomar a história do processo que antecedeu e deu continuidade à revolução que derrotou o czarismo russo, Visentini discute alguns mitos e apresenta paradoxos que contribuem para o entendimento desse polêmico período histórico. “As contradições sociais da modernização tardia e dos fracassos geopolíticos do império russo, bem como a crise internacional provocada pela Primeira Guerra Mundial, foram fatores catalisadores mais importantes do que a ação de determinados indivíduos,” escreve Visentini na introdução de seu livro editado pela Alta Books.

Qual a relevância de estudarmos a Revolução Soviética passados cem anos?

O escritor Moshe Lewin contrapõe aqueles que dizem que essa é uma história que deve ser esquecida porque a União Soviética já não existe mais. Pelo contrário, para Moshe essa é uma história recente e que precisa ser conhecida porque continua sendo um sistema insatisfatoriamente compreendido. No ano passado eu me dediquei a estudar as lacunas dos registros dessa história. Estamos acostumados a analisar problemas partidários, conflitos de facções, estratégias erradas, personalidades etc. Mas como é que as pessoas viviam naquele tempo? Como é que se construíram aquele poder no dia a dia? Como é que esse poder se manteve durante tanto tempo? Seria estranho eu dizer que o Pinochet esteve todo o tempo no poder no Chile (1973 a 1990) porque ele fazia repressão; ou que Hitler (1933 a 1945) estava no poder simplesmente porque o nazismo era repressivo. O nazismo, antes de ser um partido no poder, ele foi um movimento social e político de amplo espectro na sociedade alemã, e que se encontrava em uma situação terrível. Então, esse livro se preocupou em preencher uma lacuna histórica. Precisamos estar atentos a isso porque estamos começando a viver tempos dessa natureza. Hoje não é mais possível discutir em público porque há uma resistência já prévia preparada contra qualquer argumento sensato, ou seja, os fatos não conduzem à luz, mas ao calor e a um embate que já está definido antes.

Quais são os paradoxos?

Essa revolução russa foi uma revolução paradoxal. Ela construiu muito, ela deixou muitas coisas a desejar, ela foi em direções erradas, etc. Mas erradas para quem? É fácil os liberais dizerem que foi na direção errada, e se eles dizem que estava na direção errada, é porque estava na direção certa, ou seja, não podemos concordar. Mas, sim, essa foi uma revolução de paradoxos. O primeiro vou chamar de paradoxo ‘zero’. Além de ter sido uma revolução socialista, ela foi também uma revolução russa. E pouco conhecemos da história da Rússia. Sabemos talvez o nome de um ou dois czares, mas e as raízes desse Estado? Como é que um país tão atrasado virou um território gigantesco? 1/6 das terras do planeta, o tamanho da superfície da lua? É muito simples dizer: “o bolchevismo traz uma herança asiática maldita que impõe um sistema político”. Como é que foi a experiência daquela tradição meio feudal? Como é que foi a experiência da igreja ortodoxa que veio de Constantinopla para Moscou, quando os turcos a tomaram? O que é que eles trouxeram de ritualística e de visão de poder, de legitimação do poder? As grandes invasões mongóis que submeteram o povo durante muito tempo e que eles empurravam cada vez mais para longe para ganhar profundidade estratégica. Por quê? Porque o império russo se construiu não por uma razão econômica, mas ele se construiu por uma razão de defesa estratégica de sobrevivência. Então, nós podemos por vezes atribuir a uma personalidade, ou a outra uma série de atributos, quando na verdade existem causas estruturais que também vão influir profundamente nisso. Outro paradoxo é o seguinte, depois de vencida a Segunda Guerra Mundial contra o nazismo, como é que aquele país, que se dizia socialista ia participar de uma ordem mundial na ONU, que era capitalista. Essa foi uma outra tensão da qual eles nunca se livraram, inclusive quando tiveram que se relacionar com outras revoluções que ocorreram em outros lugares.

Que questões que foram cruciais para a queda da União Soviética?

A China não bancou tanto quanto a Rússia o enfrentamento ao capitalismo, bancou até certo período. Depois, em 1971, aliou-se aos Estados Unidos. Isso vai pesar nos gastos militares que ocorrerão depois na Rússia, que vive essa tensão dentro do partido, polarizado entre duas visões, e vai haver uma estagnação política. É um período de privilégios que se eternizaram e de envelhecimento das pessoas nos cargos. Então a sociedade deixa efetivamente de se sentir parte de um processo, e isso coincide com outros fatores que vão ser fundamentais para a queda. Um deles é que nesse momento, nos anos 70, se fez repercutir um problema muito grave que é a falta de gente para as vagas de trabalho, então a maneira como a economia era gerenciada já não se mantém porque não há abundância de mão de obra (consequência da guerra mundial). O segundo fator é a crise do petróleo que gerou dois acontecimentos bem fatais. O primeiro deles é que a União Soviética e outros países do leste europeu ficaram tentados a vender commodities – que valiam muito – para comprar patentes. Por exemplo, o pessoal queria muito TV colorida. Então eles pensavam: bom, nós vamos gastar “x” para fazer televisão colorida, mas se nós vendermos petróleo que está caro, nós vamos comprar do Japão uma patente e vamos produzir aqui TV colorida. Em contrapartida, levavam a população a não se meter em política porque eles estavam possibilitando o consumo a eles. Assim foi havendo um processo gradativo não só de desmoralização, mas de paralisia.

Gorbachev foi um traidor?

Ele era um líder errático e sem projeto, que entregou os meios de comunicação: os instrumentos que a população tinha para se informar, os jornais, até os arquivos ele entregou para um amigo que ficou 12 anos como embaixador no Canadá. Mas, no fim, o que levou à queda da Rússia foi essa luta entre duas tendências, essas duas visões que existiam dentro do partido e que acabou vencendo uma que, vamos chamar assim, de suicida, e a Rússia cai em um período de completa anarquia, várias daquelas repúblicas ficaram independentes contra a vontade.

As consequências são sentidas até hoje?

Lamentavelmente isso transformou o perfil do planeta. Eu me recordo perfeitamente que poucos meses depois que caiu a União Soviética o supremo do Japão julgou que o conceito de jornada de trabalho era inconstitucional; que não existe jornada de trabalho existe trabalho a ser feito e o cara vai trabalhar até acabar o que tem pra ser feito mesmo que seja sábado à noite. Então o retrocesso que veio. Muita gente diz: ah, caiu o stalinismo, agora vem o verdadeiro socialismo, mas eu digo que foi o bebe, a água suja, e a banheira que foram jogados fora. Por quê? Porque foi o capitalismo que fez a grande mudança de dispersar os trabalhadores organizados. Fisicamente, trabalhadores como os dos aplicativos de transporte estão pulverizados, não existe contato uns com os outros. E a esquerda perdeu a capacidade de ter bases que ela controle, ou seja, está na defensiva, lutando para não perder alguma coisa. Faz tempo que não tenta ganhar nada, só tenta não perder mais do que já perdemos. Então a esquerda tem que aprender para renascer. Hoje a precarização do trabalho é majoritária. E é a partir dessa realidade que vamos ter que trabalhar. E conhecer o passado não vai fazer mal nenhum.