As interferências gráficas de Issa utilizam diversas técnicas — uso de letraset, tinta, lápis, fita adesiva. A decisão de intervir sobre as fotografias surgiu durante o processo. Já as estampas florais aparecem como uma terceira camada, uma espécie de “camada doméstica”, que abarcaria, nas palavras do próprio Casmurro: “o mesmo contraste da vida interior, que é pacata, com a exterior, que é ruidosa”.
A forma do livro
As visitas aos sebos mostraram que o formato de um livro escrito há 117 anos pode variar bastante. Mas quais eram das dimensões do exemplar de Dom Casmurro que Machado de Assis segurou em vida? Os raríssimos exemplares da Garnier não deixam dúvidas: 17,5×11,5 cm! A decisão do formato respondeu, portanto, a seguinte questão: e se pudéssemos conectar leitores de hoje com o autor através do gesto de segurar o livro?
Já o raciocínio para a escolha da tipografia utilizada no livro seguiu caminho justamente aposto. Designers costumam justificar suas escolhas tipográficas com a época em que a obra foi escrita. É uma maneira de conectar leitores com o espírito e época do texto. A tipografia funciona como essa chave-mestra com o poder de nos teletransportar. Mas esta conexão com a época em que o romance foi escrito seria importante e até mesmo desejável? Talvez fizesse sentido se julgasse que as vozes de Bentinho e Capitu estivessem presas no século XIX, sem chance de atualização. Segui caminho oposto.
A fonte utilizada, portanto, foi a Stanley, desenhada pelo suíço Ludovic Balland e lançada em 2012. Seu desenho é inspirado na Times New Roman, da década de 1930, uma das referências do design tipográfico do século XX. Além de ser uma ótima fonte de texto — com todos os recursos técnicos necessários para a composição do texto — o seu desenho, com algumas junções e terminações abruptas me ajudariam a conectar a forma do texto com as ilustrações.
Os capítulos seguem um fluxo contínuo, sem quebras de página. A numeração e títulos dos capítulos foram agrupados na mesma linha, cada um alinhado aos extremos das margens, conectadas por um traço. As ilustrações de Issa serviriam como uma espécie de ante-sala para a atração principal.
Cidade e natureza ocultas
Em Dom Casmurro, como em outras obras do Machado, a cidade do Rio de Janeiro é praticamente um personagem da história. Imagens do Rio já estavam presentes nas interferências de Issa, mas a ideia de incluir o contraste—entre a cidade, controlada; e a natureza, imprevisível—à estrutura física do livro, através do corte lateral, nos pareceu irresistível.
As pinturas das margens frontais se tornaram muito populares nos livros do final do século XVIII e XIX. As margens são estendidas para realização das pinturas e, após a secagem, outra camada de tinta é aplicada no livro completamente fechado. Essa técnica torna possível que o desenho fique invisível com o livro fechado. Nesta edição, o Pão de Açúcar e os Arcos da Lapa estão alternados e se revelam no estender das páginas, permanecendo ocultos pela tinta preta quando o livro está fechado. O processo foi feito no computador, aplicando um pequeno fragmento da imagem em cada uma das 384 páginas.
Uma capa, muitas capas, uma capa
Em um processo que durou praticamente 9 meses — da primeira reunião até o livro na gráfica — a capa foi uma consequência do processo do miolo. A figura masculina feita em letraset está sem rosto e é invadida por um borrão que atravessa até a quarta capa. Detritos e pedaços de letras decompostas se espalham sobre a capa, em alguns casos, pedaços de ornamentos tipográficos dourados cobrem o desenho.
Dos 1000 exemplares impressos, 100 possuem capas especiais, ilustradas individualmente por Issa. Utilizando apenas lápis, caneta hidrocor e letraset, os desenhos foram feitos em folhas de impressão das páginas do miolo no ateliê do artista. Cada folha teve a ordem de impressão alternada, gerando combinações diferentes nas cores cobre e rosa antes de receber as intervenções do artista. Por fim, as folhas foram reencaminhadas à gráfica para seguir o processo industrial do livro. Uma luva impressa em verde musgo com o nome do romance e do autor impressos em hotstamping cobre acompanha o livro.
O ato de projetar livros envolve um diálogo constante com editores, ilustradores, produtores gráficos, leitores. E claro que esta conversa inclui as obras, os autores, os personagens, o cenário da trama. Quando desenhamos um livro novo, somos convidados a conhecer uma pessoa nova, entrar em diálogo. Já no caso de Dom Casmurro, após esta longa jornada, sinto como se tivesse revisitado um amigo antigo, alguém muito querido.
Espero que este objeto proporcione novos encontros com (novos e antigos) leitores. E, se não for pedir demais, que o futuro ainda me reserve esbarrar com outros amigos antigos por aí. 😉
p.s. Você pode adquirir o livro no site da Editora Carambaia.