Dom Casmurro: um livro superlativo

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Tereza Bettinardi

Já escrevi uma vez que os livros são encontros. Gosto de pensar que eles são acontecimentos com o poder de alterar você de tal forma que é impossível voltar à posição inicial. Podemos revisitar os livros que nos são caros e acredito que quando isso ocorre, também topamos com as versões atualizadas de nós mesmos.

O meu primeiro encontro com Dom Casmurro aconteceu quando eu tinha 14 anos. Era 1998. Foi totalmente por acaso, xeretando a biblioteca do meu pai. Abri o livro sem saber do que se tratava. Já no primeiro capítulo, contrariando a recomendação do narrador, tive que consultar um dicionário para descobrir o significado da palavra “amuado”. O momento de estupefação viria na página seguinte, no segundo capítulo, em uma passagem que sei de cor até hoje, o lápis foi testemunha:

Foto: Divulgação
Foto: Divulgação

Considerada uma das principais obras de Machado, Dom Casmurro conta a história de Bento Santiago e Capitolina, desde o namoro infantil até o casamento atormentado pelo ciúme. Em vez dos amores românticos, um amor amargo, desenganado. Os fatos são narrados por Bentinho, que relembra, já velho, episódios de sua vida.

“Atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência” foi tão fulminante para o meu eu de 14 anos — e aqui entramos em território altamente confessional — que não por acaso o meu primeiro apelido na internet foi… Bentinha! O personagem também inspirou o meu primeiro endereço de e-mail! Infelizmente, a conta foi desativada com o fim da internet discada.

No começo de 2016, fui chamada para um encontro às escuras: era a primeira reunião com os editores Fabiano Curi e Graziella Beting, da Carambaia. O nome do livro só foi relevado pessoalmente. No caminho de volta para casa, um misto de euforia extrema e pavor tomou conta de mim. A sensação deve ser parecida com a de ganhar na loteria. O desafio trazia uma responsabilidade enorme [e dupla]: honrar um dos livros mais importantes da nossa literatura e da minha vida.

Algumas semanas depois daquela reunião, embarquei pro Rio com o livro na mala. Ao invés da praia, a missão era achar a tal rua de Mata-Cavalos, essas coisas. Visitei o primeiro exemplar publicado pela Garnier em 1899 na seção de obras raras na Biblioteca Nacional. Descobri também que os sebos — tanto no Rio como em São Paulo — possuem a “estante machadiana”. Nela é possível comparar diversos exemplos da iconografia usada em diferentes épocas para o livro.

Basicamente, percebi que existiam dois caminhos trilhados para abordar a obra: o primeiro, com bustos e retratos do fundador da Academia Brasileira de Letras; o segundo, com retratos idealizados da enigmática Capitu, a dos olhos de ressaca.

A leitura avançava e dois aspectos ficavam mais claros. Um deles é o quanto a cidade do Rio de Janeiro é mesmo parte indissociável da obra de Machado: a rua de Mata-Cavalos, a Floresta da Tijuca, a praia do Flamengo, o bairro da Glória, a rua do Ouvidor. O segundo aspecto é que, antes da polêmica da traição [que realmente não importa!], Dom Casmurro é uma história sobre o ciúme. Este caldeirão foi a matéria-prima para o projeto gráfico.

A primeira decisão foi que era preciso adicionar elementos novos [e porque não, estranhos] à iconografia existente. Seria possível escapar da referência à figura feminina? Novos caminhos poderiam ser abertos e explorados? Busquei abordar a obra através da relação desfeita, do amor desencantando.

Naquele momento, qualquer que fosse o caminho a seguir — figurativo, abstrato, etc. —, a única resolução que tinha era que o livro deveria ser sombrio, escuro, como se estivesse encoberto. Deveria ter mais de uma camada, algo que apresentasse uma “base” clara com interferências escuras. Algo como uma parede de cores pasteis coberta pelo preto. Era necessário que essas imagens — ou mesmo fragmentos — fossem ilustrados por alguém cujo desenho fosse corrosivo o bastante para impregnar as páginas até o extremo de cegá-las. Lancei o desafio para o artista paulistano Carlos Issa que topou na hora.

As interferências gráficas de Issa utilizam diversas técnicas  —  uso de letraset, tinta, lápis, fita adesiva. A decisão de intervir sobre as fotografias surgiu durante o processo. Já as estampas florais aparecem como uma terceira camada, uma espécie de “camada doméstica”, que abarcaria, nas palavras do próprio Casmurro: “o mesmo contraste da vida interior, que é pacata, com a exterior, que é ruidosa”.

A forma do livro

As visitas aos sebos mostraram que o formato de um livro escrito há 117 anos pode variar bastante. Mas quais eram das dimensões do exemplar de Dom Casmurro que Machado de Assis segurou em vida? Os raríssimos exemplares da Garnier não deixam dúvidas: 17,5×11,5 cm! A decisão do formato respondeu, portanto, a seguinte questão: e se pudéssemos conectar leitores de hoje com o autor através do gesto de segurar o livro?

Já o raciocínio para a escolha da tipografia utilizada no livro seguiu caminho justamente aposto. Designers costumam justificar suas escolhas tipográficas com a época em que a obra foi escrita. É uma maneira de conectar leitores com o espírito e época do texto. A tipografia funciona como essa chave-mestra com o poder de nos teletransportar. Mas esta conexão com a época em que o romance foi escrito seria importante e até mesmo desejável? Talvez fizesse sentido se julgasse que as vozes de Bentinho e Capitu estivessem presas no século XIX, sem chance de atualização. Segui caminho oposto.

A fonte utilizada, portanto, foi a Stanley, desenhada pelo suíço Ludovic Balland e lançada em 2012. Seu desenho é inspirado na Times New Roman, da década de 1930, uma das referências do design tipográfico do século XX. Além de ser uma ótima fonte de texto — com todos os recursos técnicos necessários para a composição do texto — o seu desenho, com algumas junções e terminações abruptas me ajudariam a conectar a forma do texto com as ilustrações.

Os capítulos seguem um fluxo contínuo, sem quebras de página. A numeração e títulos dos capítulos foram agrupados na mesma linha, cada um alinhado aos extremos das margens, conectadas por um traço. As ilustrações de Issa serviriam como uma espécie de ante-sala para a atração principal.

Cidade e natureza ocultas

Em Dom Casmurro, como em outras obras do Machado, a cidade do Rio de Janeiro é praticamente um personagem da história. Imagens do Rio já estavam presentes nas interferências de Issa, mas a ideia de incluir o contraste—entre a cidade, controlada; e a natureza, imprevisível—à estrutura física do livro, através do corte lateral, nos pareceu irresistível.

As pinturas das margens frontais se tornaram muito populares nos livros do final do século XVIII e XIX. As margens são estendidas para realização das pinturas e, após a secagem, outra camada de tinta é aplicada no livro completamente fechado. Essa técnica torna possível que o desenho fique invisível com o livro fechado. Nesta edição, o Pão de Açúcar e os Arcos da Lapa estão alternados e se revelam no estender das páginas, permanecendo ocultos pela tinta preta quando o livro está fechado. O processo foi feito no computador, aplicando um pequeno fragmento da imagem em cada uma das 384 páginas.

Uma capa, muitas capas, uma capa

Em um processo que durou praticamente 9 meses — da primeira reunião até o livro na gráfica — a capa foi uma consequência do processo do miolo. A figura masculina feita em letraset está sem rosto e é invadida por um borrão que atravessa até a quarta capa. Detritos e pedaços de letras decompostas se espalham sobre a capa, em alguns casos, pedaços de ornamentos tipográficos dourados cobrem o desenho.

Dos 1000 exemplares impressos, 100 possuem capas especiais, ilustradas individualmente por Issa. Utilizando apenas lápis, caneta hidrocor e letraset, os desenhos foram feitos em folhas de impressão das páginas do miolo no ateliê do artista. Cada folha teve a ordem de impressão alternada, gerando combinações diferentes nas cores cobre e rosa antes de receber as intervenções do artista. Por fim, as folhas foram reencaminhadas à gráfica para seguir o processo industrial do livro. Uma luva impressa em verde musgo com o nome do romance e do autor impressos em hotstamping cobre acompanha o livro.

O ato de projetar livros envolve um diálogo constante com editores, ilustradores, produtores gráficos, leitores. E claro que esta conversa inclui as obras, os autores, os personagens, o cenário da trama. Quando desenhamos um livro novo, somos convidados a conhecer uma pessoa nova, entrar em diálogo. Já no caso de Dom Casmurro, após esta longa jornada, sinto como se tivesse revisitado um amigo antigo, alguém muito querido.

Espero que este objeto proporcione novos encontros com (novos e antigos) leitores. E, se não for pedir demais, que o futuro ainda me reserve esbarrar com outros amigos antigos por aí. 😉

p.s. Você pode adquirir o livro no site da Editora Carambaia.