Civilização Brasileira lança coletânea de Franz Kafka com conto inédito e tradução diretamente do alemão

Da Redação 

Um dos maiores escritores da história, Franz Kafka tem seus romances, novelas e contos incluídos nas mais diversas listas do que de melhor já se produziu na literatura mundial. Sua escrita influenciou – e influencia até hoje – a cultura não apenas na literatura, mas ainda no cinema e nas artes em geral. Na coletânea “Blumfeld, um solteirão de mais idade e outras histórias”, que chega às livrarias em fevereiro pela Civilização Brasileira, o organizador Marcelo Backes não apenas reúne os contos mais importantes do autor. Aqui, ele nos apresenta os diversos heróis que aparecem ao longo dos anos na obra do escritor tcheco para defender a tese de que, no fim das contas, todos eles são o mesmo. Além das narrativas mais conhecidas no Brasil, como “Josefine, a cantora” e “Um artista da fome”, a seleta traz ainda um texto inédito de Kafka: a peça “O guarda da cripta”, único drama que escreveu.

“Quando é um camundongo – até mesmo quando é a cantora dos camundongos – ou quando é um cão, quando é um solteirão ou quando é um pai de família, quando é um médico rural ou um professor de aldeia, quando é um comerciante ou um vizinho, quando é Ulisses ou as sereias que o encantam, quando é Sancho Pança ou Bucéfalo, quando é Prometeu ou Posídon, quando é um pião ou o filósofo que o persegue, até mesmo quando é um índio ou o campeão de natação que não sabe nadar do fragmento “O grande nadador”, o herói de Kafka é sempre o mesmo, Kafka é sempre o mesmo. Até num aforismo, o escritor tcheco se confunde de maneira lúdica e insinuante, às vezes dando falsas pistas, com seu personagem sempre igual, e diz de um certo e aparentemente indeterminado “ele”: “Há quem negue a existência das desgraças apontando para o sol; ele nega a existência do sol apontando para as desgraças.” Ele também é sempre Kafka!”, escreve Backes no posfácio.

Premiado pela Biblioteca Nacional, Marcelo Backes é o responsável também pela tradução, diretamente do alemão, dos 36 contos que compõem a obra. A edição inclui ainda um posfácio no qual Backes analisa vida e obra de Kafka, detalha suas influências e as características de suas principais obras, além de aprofundar a teoria sobre as semelhanças entre os heróis do autor. O leitor encontrará também uma cronologia da vida do autor e um índice de cada uma das 36 narrativas e suas origens e datas de publicação.

Trecho de Guarda da Cripta:

 Príncipe: Mais uma vez, então. Até agora a cripta no Parque Frederico era vigiada por um guarda que tem uma casinha na qual mora, à entrada do parque. Havia alguma coisa a reparar nisso tudo?

Camareiro: Com certeza não. A cripta tem mais de quatrocentos anos, e durante esse tempo todo também foi vigiada desse mesmo modo.

Príncipe: Poderia se tratar de um abuso. Por acaso não é um abuso?

Camareiro: É uma instituição necessária.

Príncipe: Quer dizer então que é uma instituição necessária. Agora já estou há tanto tempo aqui no castelo de campo, consigo vislumbrar detalhes que até o momento eram confiados a estranhos – eles se mostram eficazes só aos trancos e barrancos – e descobri: o guarda lá em cima no parque não basta, é necessário que um guarda vigie também na parte de baixo, junto à cripta. Talvez não se trate de um encargo agradável. Mas a experiência ensina que para qualquer posto se encontram pessoas dispostas e adequadas.

Camareiro: É claro que tudo que Vossa Alteza ordenar será executado, ainda que a necessidade da ordem não seja compreendida.

Príncipe (Enfurecido.): Necessidade! Por acaso a guarda no portão do parque é necessária? O Parque Frederico é uma parte do parque do castelo, é completamente envolvido por ele, e o parque do castelo é vigiado à farta, inclusive militarmente. Por que, então, vigiar de modo especial o Parque Frederico? Isso não é uma simples formalidade? Um leito de morte amigável para o pobre ancião responsável pela guarda por lá?

Camareiro: É uma formalidade, mas uma formalidade necessária. Testemunha do respeito ante os grandes mortos.

Príncipe: E uma guarda na própria cripta?

Camareiro: Ela teria, segundo a minha opinião, um ressaibo policialesco, ela seria uma guarda real de coisas irreais e distantes do humano.

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Franz Kafka (1883-1924) nasceu em Praga, numa família judia, e foi educado em colégio alemão. Sua infância e adolescência foram marcadas pela figura dominadora do pai, comerciante próspero, que sempre fez do sucesso material a tábua de valores para medir o mundo a sua volta, inclusive seu filho, que, no entanto, se tornaria – à revelia do pai e das circunstâncias – uma das maiores expressões da literatura do século XX.

Marcelo Backes é doutor em Germanística e Romanística pela Universidade de Freiburg, na Alemanha. É escritor, tradutor e professor. Em 2015 recebeu o Prêmio Nacional da Áustria, na condição de primeiro brasileiro condecorado. Em 2014, foi contemplado com o Prêmio Literário Paulo Rónai da Biblioteca Nacional, pela tradução de “Michael Kohlhaas”, de Heinrich von Kleist.