As viúvas das quintas-feiras, de Claudia Piñero, fala de classe e preconceito de classe
Por Baiard Brocker
Quase não sujei pratos. Há alguns anos, havia me conformado que já não podíamos pagar pessoal doméstico de jornada completa, e só vinha uma mulher duas vezes por semana para fazer o trabalho pesado. A partir de então, aprendi a sujar o mínimo possível, aprendi a não amassar minha roupa, a quase não desfazer a cama. Não pela carga da tarefa em si mesma, mas porque lavar pratos, fazer as camas ou passar a ferro me lembravam o que tivera um dia e não tinha mais. Com esse pensamento de Vírginia, uma das moradoras do condomínio Altos de La Cascada, arredores de Buenos Aires, Claudia Piñero prenuncia o que abordará em seu excelente romance As viúvas das quintas-feiras, Ed. Objetiva, 252p.
A obra dessa portenha nascida em 1960 é absolutamente contemporânea em nossos países que, por conta do capitalismo, apresentam a nítida divisão de classes sociais em termos políticos, econômicos e culturais. Em sua narrativa, Claudia apresenta-nos um típico condomínio classe média-alta que poderia estar localizado em São Paulo, Porto Alegre, Santiago, Miami…
A autora constrói sua narrativa, pontuada de termos do inglês e alguns do francês bem ao gosto dos moradores do condomínio, de forma a compor um retrato, a partir de descrições de um narrador e da fala de seus personagens, dessa pequena ilha cercada de tudo o que seus habitantes consideram deve ficar do lado de fora de seus domínios, por lembrar o que eles mais evitam em termos de realidade: a pobreza e as precariedades comuns às grandes cidades em que vivemos. Entretanto, nem essa ilha escapa das reviravoltas de um sistema econômico que tem suas fragilidades. E é nessa iminência de uma desestabilização dos frágeis laços que unem os membros dessa comunidade que a história se desenvolve.
Podemos perceber, nesse retrato produzido por Claudia, o ideário dessas pessoas que sobrepõem o ter ao ser, e até mesmo o parecer ser é mais importante do que o próprio ser. Exemplifica essa afirmação o trecho em que a autora descreve a atitude de um dos casais do condomínio que adota duas crianças oriundas de classes populares. A menina já em idade escolar, Ramona, teve seu nome alterado pela mãe adotiva, Mariana, para Romina, com o argumento de não conseguir entender como alguém, naquela época, podia ter dado um nome desses a uma menina. Ramona era nome de outra coisa, não de menina. Situações como essa explicitam bem a necessidade dessas pessoas de ajustarem tudo e todos àquilo que lhes parece mais palatável, mais de acordo com o gosto por eles instituído. Além do nome, Romina/Ramona teve também seu cabelo negro, brilhante e rígido como arame “domados”, pois como era não seria fácil adquirir as English skills das colegas de escola. Já com o menimo, Pedro, a situação era diferente: ele tinha só três meses e, por isso, poderia ser moldado ao gosto dos “beneméritos” que o adotaram.
Atitudes características de pessoas pertencentes a esse grupo social vão sendo apresentadas ao longo do livro de modo a nos mostrar como elas pensam e se portam e, acima de tudo, a dificuldade que têm de enxergar a situação em que vivem, a ponto de pagar com a própria existência a permanência nessa “bolha” de realidade que o meio em que vivem proporcionou-lhes, tornando-os reféns e apáticos diante das adversidades que, normalmente, são enfrentadas de outro modo por pessoas de condição social em que a sobrevivência ainda fala mais alto do que a aparência.
No cinema, criações recentes e paralelas à obra de Claudia, no Brasil, são os filmes Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, 2015, e Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, 2016, que nos permitem perceber, sem apelar à caricatura, o perfil e o funcionamento dessa classe social que se separa das demais: de um lado por excluir os que considera menos do que ela; de outro, pela falta condições, principalmente identitárias, para ser como são os que considera estarem acima dela. E é nesse isolamento que seus membros se tornam mais unidos e parecidos uns com os outros, formando uma espécie de amálgama comportamental.
Seria, acredito, de bom proveito que essa obra fosse trabalhada nas aulas de literatura do Ensino Médio das nossas mais conceituadas escolas privadas, em vez do “exaustivo” exame que nelas ocorre das leituras obrigatórias para a prova de literatura do concurso vestibular da UFRGS, que têm pautado o ensino dessa disciplina nessas escolas. Acredito também que com proveito bem maior, não que as leituras consideradas obrigatórias para o vestibular sejam menos importantes e necessárias para a formação dos alunos, mas porque possibilitaria a eles, em sua quase totalidade pertencentes à classe social que o livro retrata, uma reflexão que, provavelmente, não terão oportunidade de fazer quando adultos e absorvidos pelo modus vivendi do meio do qual fazem parte, e seguirão, então, vivendo e reproduzindo aquilo que não faz bem primeiro a eles, como podemos concluir a partir da leitura de As viúvas das quintas-feiras, e ao mundo em que vivemos.