Por Gabriela Silva
Futebol não acaba na quarta-feira de cinzas
Nelson Rodrigues, torcedor do Fluminense (time carioca) usava de sua linguagem ácida e olhar tremendamente crítico para falar da sua paixão pelo futebol. Durante duas décadas, o “anjo pornográfico” dedicou-se a escrever sobre o esporte, uma grande metáfora para falar do próprio país – ele leu o Brasil através dos campos de futebol. Segundo relatos da época, muitas vezes ele sequer ia ao estádio ver os jogos, era de casa mesmo que fazia sua leitura do jogo. Outras vezes, ao assistir in loco algum jogo, pedia informações ao amigo Armando Nogueira, ou perguntava que jogo estavam assistindo. Afinal, o jogo nem importava mesmo, era a possibilidade de uma boa história que estava ali, entre ele e o gol. As crônicas escritas por Nelson são até hoje estudadas em seus aspectos formais e também em seu conteúdo. Com sua escrita despojada e irônica, o escritor conquistou milhares de leitores ao longo dos anos em que se dedicou a escrever sobre futebol, sobre o Brasil — “a pátria de chuteiras” — frase que se tornou jargão na voz de muitos locutores até os dias de hoje. Romancista e dramaturgo, Nelson trouxe para o âmbito da crônica a paixão pela literatura que compartilhou com o futebol.
Eduardo Galeano por sua vez, escreve sobre as obscuras histórias do futebol, um mundo paralelo ao que é assistido nas partidas sob os fortes holofotes dos estádios ou em dias ensolarados. O escritor uruguaio, auto-declarado um perna de pau, coloca nas palavras, nas histórias que recria, ainda que breves, situações, acontecimentos e relações que o torcedores — espectadores de apenas um possível ponto de visão — não chegaram a conhecer. E outras histórias da própria origem do esporte, das suas relações com o mundo, com a literatura (até mesmo Shakespeare) Futebol, para Galeano, além de uma paixão, era também política. Prova substancial de que tudo o que nos cerca é constituído de faces que desconhecemos.
Jorge Luís Borges não gostava de futebol. Não gostava mesmo, dizia que era uma estupidez e criticava a popularidade do esporte. Gosto muito de Borges, principalmente de seus prefácios, lendo Prólogos, com um prólogo de prólogos, livro que é uma compilação dos prólogos e apresentações escritos por Borges é que desenvolvi meu gosto por apresentações. Apesar das muitas semelhanças entres os gostos do escritor argentino e os meus, no futebol divergimos. Desde a infância o esporte bretão convidava-me a doar a minha atenção em noventa minutos de partida. E as inúmeras tentativas de praticar o esporte, resignaram-me à literatura e a predileção pela não execução de uma vida esportiva. Não havia como contestar a natureza: sou uma criatura da escrivaninha e da pena, a bola de futebol, deixo-a aos nobres esportistas que nasceram com o talento que a mim os deuses não contemplaram.
Escrever uma apresentação não é uma tarefa fácil, já fiz algumas, de poemas, contos, novelas e romances. Para escrever uma apresentação não se pode ler apenas uma vez o livro, são necessárias algumas leituras em que nos comportamos de diferentes modos: leitor das histórias ou poemas com nossos corações sendo tomados pelas palavras e ideias do autor e depois a leitura crítica, quando ficamos muito atentos a cada detalhe técnico da obra. Somos então envolvidos pelo texto, permanecemos nele durante um bom tempo e do universo que ele nos proporciona e dessas impressões organizamos e mostramos ao mundo a nossa percepção do livro. Permitam-me uma confissão: se não gostamos do livro, mesmo que ele seja muito bem escrito, a apresentação torna-se um abismo entre as palavras, é como se estivéssemos a montar um puzzle totalmente desordenado e confuso. Agora se gostamos, é muito gratificante escrever e ficamos felizes de ter nossas impressões associadas à obra.
É como me sinto agora, ao escrever sobre O louco no espelho de Lúcio Saretta, um livro de crônicas esportivas. Eu, uma borgiana, que vivo na minha biblioteca/paraíso, sou convidada para escrever sobre… esportes. Aceitei, por ser Lúcio um dos autores da antologia de contos da oficina de Assis Brasil do ano de 2015, que eu já havia prefaciado e de quem gostei muito quando li. Temerosa, não do que ia encontrar, mas de como eu daria conta de tal tarefa, comecei minha leitura das crônicas.
Ao pensar sobre Nelson Rodrigues e o poder incontestável da metáfora e da linguagem, Eduardo Galeano e a história do futebol e como as palavras podem nos mostrar mais sobre o mundo do que sabemos e ainda sobre Borges e a arte de escrever prólogos é que entendo a potência da relação da literatura e do futebol. Lembremos que a literatura é representação de mundo, ela já, há muito tempo definida por Aristóteles (que provavelmente seria torcedor do Internacional pela sua genialidade), vale-se da verossimilhança, qualidade mimética de aproximar-se o quanto mais possível do mundo que se representa. Então, essa organização de um universo paralelo e ao mesmo tempo simbiótico com o real é executada através da linguagem, da escolha das personagens, do tempo que será narrado e da voz que irá contar essas histórias aos leitores. É preciso que essa paixão, esse pathos que move o escritor encontre também uma forma, um modo singular de expressão, entram aí os gêneros literários: romance, conto, novela e crônica.
Escrever crônicas é um exercício de exigência com a realidade. Gênero predominantemente ligado à ideia de simultaneidade com o tempo do seu escritor, a crônica já em seu nome apresenta-se: traz em si a questão do tempo, de Chronos — o deus grego que associado a temporalidade. Também é um texto que se pretende breve, uma conversa com o leitor, onde o senso crítico do autor emerge em cada frase, apresentando sua forma de pensar, repleto de singularidades que tomam a realidade para si e a reapresentam ao leitor. Muitas vezes ela se parece com o conto – podemos dizer mesmo da irmandade que se estabelece entre os dois gêneros – por contar uma história, por apresentar enredo, tempo, espaço, narrador e personagens.
E há mesmo vários tipos de crônica: histórica, humorística, narrativa, dissertativa, lírica, poética e jornalística. As crônicas de Lúcio Saretta, se enquadram, para mim, em dois tipos – a narrativa, pois contam histórias de tempos diversos e lírica, por tomarem para si uma linguagem tão bonita e tão bem elaborada que muitas vezes li como quem estava a ler prosa poética. Passagens repletas de lirismo e que falam de amor, morte, história, amizade, música e esporte.
Lembro-me das musas, as da mitologia que presidiam as diferentes formas de arte e conhecimento. Não há nenhuma que cuide especialmente do futebol. Pesquisei a sério, mas levando em conta que a dedicação de Lúcio, a verdadeira contemplação de sua alma é a literatura, então podemos dizer que evocamos duas dessas beldades (a beleza é um dos fatores primordiais do esporte em questão – pensemos nos dribles e nas grandes jogadas que criaram mitos futebolísticos). Calíope e Clio: a primeira cuidava da arte da eloquência e a segunda da história. E Lúcio usa da literatura para resgatar a história do futebol. Ainda podemos citar Camões em Os Lusíadas: “Cesse tudo o que a Musa antiga canta, Que outro valor mais alto se alevanta” – e do centro do campo verde e vistoso, ergue-se a razão de tudo o que aqui se apresenta: a paixão pelo futebol.
As crônicas que compõem O louco no espelho são essencialmente sobre futebol. Em muitas páginas de episódios de diferentes épocas da história do esporte Lúcio traz ao leitor personagens que habitam o imaginário de torcedores de todos os tempos, mesmo os mais jovens que conhecem apenas essas peculiares personalidades através de fotos ou de programas de televisão antigos. E os mais velhos, os que alcançam com sua memória um passado mais distante, há a rememoração, a saudade de tempos vividos, daquele aperto no peito de ansiedade ou de alegria. O livro de Lúcio, mais do que uma obra sobre esporte, é sobre amor.
Amor pela arte que é o futebol, por seu domínio estético, social e afetivo. Ópio do povo, tantas vezes o futebol é a única alegria (embora Vinicius de Moraes tenha dito que é o carnaval) permitida a homens de todas as idades e credos. Assistir uma partida de futebol, admirar a personalidade de um jogador, acompanhar o time durante um campeonato, ser testemunha de momentos históricos como copas, dribles fabulosos, jogadores que se tornam imensos a cada jogo, tudo isto se configura como a prática do amante do futebol.
Grandes personalidades habitam esse imaginário que Lúcio Saretta apresenta em O louco no espelho. Desde os menos conhecidos de times locais até craques conhecidos no mundo inteiro por milhares de torcedores e admiradores: Garrincha, Pelé, Leônidas, Didi e tantos outros que movimentaram esse museu futebolístico que é a memória de muitos brasileiros.
Nessas histórias contadas em O louco no espelho, não existe um torcedor único ou ainda apenas um jogador lembrado, são muitas narrativas que trazem histórias antigas e desconhecidas do grande público e outras que foram notícias e percorreram o país e o mundo. Como surgimento de ídolos e times, até as derrotas cabalísticas em torno do número sete. Times grandes, seleções nacionais, times pequenos, times rivais como Grêmio e Internacional, Juventude e Caxias e até histórias com os nossos hermanos e a grande sacada de ter um Papa que gosta de futebol. Narrativas que contam dos problemas sociais, raciais, financeiros, identidades e origens, amor e morte, saudades e o desejo de glória. Tudo é memória nas crônicas de Lúcio.
Também Lúcio flerta com o boxe, comenta de boxeadores que fizeram nome nas histórias do ringue, por derrotas e vitórias, suas origens e destinos. Há casos conhecidos como Rocky Marciano, Jake La Motta, Sugar Ray Robinson, Maguila, Evander Holyfield e Mike Tyson. As crônicas por sua vez, flertam com o boxe e com o futebol, numa alegoria que se move no ringue e no campo, lembrando grandes nomes e as tristezas e contentamentos dos pugilistas. Suas histórias pessoais ficaram registradas na memória de gerações de espectadores que vibraram a cada golpe e também foram nocauteados junto com seus ídolos.
Há ligações com a música: Pink Floyd, Beethoven, Noel Rosa, Elza Soares, musicalidades que vão surgindo entre as histórias do futebol. Fios de arte e cotidiano que vão formando a tessitura que Lúcio se propõe a apresentar ao leitor. A literatura emerge em muitos momentos do livro, escritores e suas histórias como Edgar Alan Poe, Ernest Hemingway, Charles Dickens e Melville — são apenas algumas referências que estão nas crônicas e que vão envolvendo o leitor num espaço imagético bem maior que o de um campo de futebol. E que reflete o próprio autor que conjuga a paixão pelo futebol a que sente pela literatura, ao trazer as histórias desses escritores ele nos aponta para a simultaneidade dos sentimentos, da trajetória de nossas escolhas, das peculiaridades de nossos destinos.
Uma das características do texto de Lúcio Saretta que lhe concede mais qualidade ainda, são as experiências pessoais, a juventude, as conversas, o rock e o time da cidade natal: Caxias e nesse universo que aparentemente é isolado do resto do mundo, tudo entra e se transforma em matéria a ser narrada. Muitas vezes ele assume seu papel de narrador, e de muito próximo conta sua participação em muitas histórias e conversas.
Na verdade, a grande matéria de Lúcio está muito além do futebol. É a vida, o cotidiano, a criação e manutenção do sonho. Em cada um de nós a arte reverbera de uma maneira diferente, o que importa mesmo é que ela se instala, constrói uma série de imagens, de sonoridades, de afetos e de memórias. O que é oferecido ao leitor em O louco no espelho é uma parte do imenso gosto de seu autor pelo futebol, pelo esporte e pelo significado dele para a vida de tantos que se entregam a essa paixão.
Lúcio ama as palavras e o que se pode fazer com elas. E ele faz, com qualidade de um bom contador de histórias, que nos surpreende a cada novo texto. Suas narrativas são cuidadosas em termos cronológicos e históricos, sobretudo são pensadas para o leitor e não só o torcedor de futebol, mas o leitor que deseja o universo todo para si. E sendo um apaixonado pela literatura, nela, ele depositou seu amor pelo futebol. Paixões diferentes em seus objetos de atenção, mas similares em sua intensidade. O apaixonado pelo futebol persegue seus ídolos, acompanha suas trajetórias, decora seus placares e cada jogada executada, que é arte, em movimento. O apaixonado pela literatura vale-se da linguagem e todas as possibilidades dela, o mundo mimético é um espaço em que pode-se criar o que for desejado. Não existe um limite para a execução dessa ideia. Personagens, tempo, espaço, narrador e a própria fábula que se pretende contar desenvolvem-se de maneira única de acordo com a mente de seu demiurgo. E é esse o papel de Lúcio aqui, um demiurgo de um universo construído pelo futebol e pela literatura, onde não há uma fronteira, mas uma ponte: a linguagem. É através dela que as histórias ganham o “mundo” fora do campo de futebol, do ringue, dos álbuns de imagens e das memórias de cada torcedor.
Alberto Manguel, outro argentino formidável como Borges, diz em um de seus livros que o leitor ideal é aquele que está com o autor quando ele escreve o livro. Penso então, em Borges, no seu não gostar de futebol, no entanto penso que ele ia ficar satisfeito de ler O louco no espelho, por alguns motivos: pelo espelho metáfora tão viva em sua obra e no qual todos nós nos refletimos; pela universalidade que se expande em cada texto e cada história, não é sobre futebol, mas sobre tudo que nos cerca que as crônicas tratam e finalmente pela ideia de amor e respeito à literatura que são o mote principal de Lúcio. E Borges seria esse leitor ideal, talvez não se apaixonasse pelo futebol, mas ficaria feliz com tudo o que está na escrita de Lúcio.
A menina que assistia jogos de futebol com o pai e que é torcedora do Internacional, viu-se feliz ao ler sobre tantas histórias que conhecia apenas algum ou outro detalhe. A intelectual e teórica da literatura viu-se muito feliz ao ver cada palavra trabalhada com sábia escolha e com uma intencionalidade tão bem pensada e organizada. Lúcio me trouxe literatura mais do que tudo, e me trouxe futebol de uma maneira tão bonita que me fez lembrar do Nelson Rodrigues e do Galeano. E também do Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Carlos Drummond de Andrade em diferentes visões sobre o futebol. E do Vinicius de Moraes e a ideia toda de que o carnaval é a alegria do povo. Não é não. O carnaval se perde na quarta-feira, o futebol não se esgota, cada semana tem um jogo novo, emoção nova e história que nova, vai ser tornar eterna quando um escritor como Lúcio entender que a literatura está ai para nos ajudar a entender a vida e a perpetuar o sonho.
Ainda em Borges, tudo é labirinto e repleto de imagens que nos pertencem num mundo a que nos pertencemos como imagens também. O louco no espelho somos todos nós e as nossas paixões, futebolísticas, musicais, literárias e essencialmente, humanas.
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