Sobre “As Duas Irenes’
Por Marcos Nunes em seu perfil do Facebook
Este filme está em cartaz no CineBancários, na sessão das 17h, apenas até quarta-feira. A Sala não abre às segundas.
Hoje começa o Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, o FestRio, que dá oportunidade para que conheçamos cinematografias do mundo inteiro, de países que nunca poderíamos supor capazes de produzir um único filme, como o Butão, o Camboja, o Paraguai…
Mas eu gostaria de falar mesmo é do cinema brasileiro; mais especificamente, de um filme brasileiro, que estreou, foi muito elogiado e pouco visto. AS DUAS IRENES, produzido em 2015 e que só chegou às telas em 2017, venceu o Festival de Gramado, e é reconhecido como, senão o melhor, um dos melhores filmes do ano.
É uma obra de uma maturidade extraordinária, nem parece que foi dirigida por um jovem, Fabio Meira, em sua estreia no cinema (nem um pouco por acaso, admirador de Tchekhov, de quem aprendeu a economia verbal, o anseio pela vida temperado pela melancolia, a narrativa que flui como um rio, sem corredeiras, sem percalços, com a naturalidade… de um rio mesmo).
É uma história baseada nas próprias lembranças do diretor: um homem, bígamo, tem duas filhas, uma com cada mulher, e ambas com o mesmo nome, Irene. A mais jovem partilha do ambiente familiar com mais duas irmãs, uma mais velha, às voltas com seu aniversário de 15 anos, e a mãe. Não estamos em um meio urbano, mas em uma pequena cidade. Não longe de sua própria casa, a primeira Irene descobre a segunda, ao ver seu pai entre abraços, risos e carinhos com outra mulher e esta outra Irene, uma menina um pouco mais velha.
O encontro de ambas não tem nada de dramático. Nada acontece sob registro de dramas, traumas, tragédias. Tudo flui, mas a natureza dessa fluência é humana; logo, estão ali postas as questões do poder patriarcal, da sexualidade, a ambiguidade dos sentimentos humanos em um registro de contenção que é o da repressão desses mesmos sentimentos.
As duas Irenes se tornam amigas, se aventuram juntas pelas sendas da sexualidade, dos beijos roubados, do desejo nascente e temeroso que ri da pequena urgência do sexo que brota… enquanto desenvolvem, sem saber, um plano ousado e, ao final, realizado como expressão de violação da hipocrisia que rege as relações familiares, de poder inconteste dos chefes de família.
Um filme feito de detalhes, de exposição delicada, mas que trata de grandes questões humanas: nosso lugar no mundo, o mal-estar de ser e viver em um tecido de relações sociais incompreensível, ou compreensível, mas inaceitável, as dúvidas acerca da aparência das coisas, do corpo e seus sentidos, do outro e seus enigmas.
O que mais me cativou, e sempre me cativa, no cinema, é o rompimento com a cartilha da produção cinematográfica, que exige viradas constantes no roteiro (de 10 em 10 minutos, ou 15 em 15 minutos), personagens de leitura fácil, condução do espectador para os sentidos explicitados na obra, ditos e ratificados constantemente… AS DUAS IRENES não têm nada disso. É como escrevi no começo: o filme flui como um rio, com naturalidade, mas, como se trata das apreensões humanas, o natural é perpassado pela construção social do Eu, do Outro, do Mundo. É um rio de seres humanos, perplexos, vacilantes, com seus papéis a representar, desejos a se expandir, desejos a se conter, a vida, em suma, expressa com a delicadeza da contundência artística.
O filme chegará às telinhas, à Internet, e todos poderão vê-lo, e assim poderão limpar suas mentes do ritmo irritante desse cinema videogame imposto pela indústria cultural, esse cinema de aturdimento, de muito barulho e nenhuma profundidade, de propósitos sumários, objetivos ideológicos expressos sem qualquer sutileza.
Este é um filme para poetas, e poetas somos todos nós, humanos: sentimos isso, sabemos disso, mas negamos por força das circunstâncias de uma vida de opressão e humilhação contínuas. Recuperemos a nossa condição humana verdadeira.