Do Jornal GGN
Por Jairo Arco e Flexa
Noite de ontem, sexta feira. Saio do cinema onde fui assistir a Chatô, o Rei do Brasil, o tão comentado longa metragem de Guilherme Fontes de trajetória fora das telas tão conturbada que muitos chegaram a proclamar que o filme, na verdade, antes de ser uma produção cinematográfica, era uma ficção que nem existiria de verdade.
Não é para menos: Chatô levou vinte anos até ser lançado nos cinemas. Visto o filme, ao chegar em casa, depois da meia-noite, dou minha conferida habitual nos “blogs sujos” – como os grandes meios de comunicação referem-se aos espaços da Internet em que se pode encontrar alguma informação diferente daquela que os jornalões e as redes de rádio e televisão arremessam ao público numa linguagem que, de tão monocórdica, mais parece um cantochão.
E o que leio, de que fico sabendo? Entre outras notícias, sou informado que o senador Delcídio Amaral não irá agüentar 30 dias na prisão e logo mais estará pronto para abrir o bico e delatar todo mundo. No caso, todo mundo inclui todo mundo mesmo, desde os antigos integrantes do governo Fernando Henrique Cardoso, passando obrigatoriamente pelos caciques do PMDB até chegar (como desejam ardentemente os condutores da Lava Jato) ao ex-presidente Lula e à atual presidente Dilma Roussef.
Além das notícias, as especulações, muitas: segundo alguns analistas, o quadro político cada vez mais sombrio que se desenha pode significar a pá de cal nas esperanças de Lula de vir a disputar a presidência em 2018. Notícia (ou previsão) ruim para o ex-presidente? Pois há uma previsão (ou notícia?) ainda pior: a essa altura, alguns analistas especulam que se Lula escapar da prisão já deverá comemorar e dar graças a Deus.
E quanto ao banqueiro preso, André Santos Esteves, do BTG Pactual? NoViomundo, Luiz Carlos Azenha, jornalista experiente que já viu de tudo, sugere com uma pitada de ironia que ele provavelmente passará apenas alguns dias no cárcere — “para efeito didático junto aos eleitores” — e logo será libertado.
As próximas eleições no Rio de Janeiro e em São Paulo, as articulações políticas no Poder Legislativo, especialmente no Senado, os tentáculos cada vez mais ambiciosos das grandes empreiteiras, tudo, absolutamente tudo, parece caminhar para um torneio mata-mata de futebol em que a grande final se dará numa disputa de pênaltis que tem hora para começar e parece que nunca, após defesas milagrosas dos goleiros, muitas bolas na trave e inacreditáveis chutes para longe do gol, nunca, mas nunca mesmo, vai chegar ao seu desfecho.
Bem, e o que tamanho quadro de suspense e alucinações tem a ver com o filme de Guilherme Fontes, com o qual iniciei esse texto?
Tem tudo, rigorosamente tudo a ver. Chatô, o Rei do Brasil, o filme inspirado no livro de Fernando Morais que levou duas décadas até chegar às telas, apesar de sua demora para vir à luz e contando a vida de um polêmico jornalista e empresário das comunicações, Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello, morto há mais de quatro décadas, mostra-se não apenas de uma impressionante atualidade como consegue ser, à sua maneira, assustadoramente profético.
No caso, o caráter assustador da profecia está bem de acordo com a atmosfera delirante, alucinada, que Guilherme Fontes e seus roteiristas deram ao filme. Em sua ótima estreia como cineasta, Fontes faz questão de deixar claro que o filme não é uma versão para as telas do livro de Fernando Morais. De fato, Morais escreveu uma biografia, e o filme Chatô é uma fantasia.
Poucas fantasias, no entanto, conseguem retratar o Brasil da década de 20 até os anos 60 do século passado – e, de maneira impressionante, até o país atual – em que esquerda e direita mostram-se, como nunca, cada vez mais extremadas em seus conflitos – de maneira tão aguçada.
Paradoxal, pois trata-se de uma agudeza cirúrgica que caminha lado a lado com a alucinação. Chatô é um frenesi de sons e imagens do começo ao fim. Fatos verídicos do Brasil contemporâneo a Chateaubriand (1892 – 1968) e ao presidente Getúlio Vargas (1882 – 1954) misturam-se com o delírio do personagem-título que, vítima de uma trombose e num leito de hospital, passa em revista sua vida, suas articulações políticas, seus amores e seus sonhos de grandeza como se estivesse num reality show da televisão, comandado por um apresentador de histeria galhofeira e com a participação de vedetes e de um conjunto musical que não deixam a peteca cair nem por um instante.
É tudo muito vulgar. Sem dúvida. No caso, porém, de uma vulgaridade que chega a ser fascinante. “É tão Brasil”, dá vontade de dizer a certa altura. Pois é uma vulgaridade que beira o sublime. E é tudo contraditório. Como foi contraditório o próprio Chateaubriand, paraibano de Umbuzeiro, capaz de se expressar em inglês, francês e alemão, mas que gostava de se exibir como se fosse um autêntico cafajeste, apresentando-se muitas vezes em cerimônias oficiais trajado como cangaceiro.
Como autor teatral, ator e crítico, digo que Chatô é o filme de que o cinema brasileiro estava precisando, uma injeção na veia para fazer esquecer a enxurrada de imitações do pior cinema americano que caracterizam a esmagadora maioria de produções nativas que, por desgraça, chegam cada vez mais aos nossos cinemas.
Entre outros milagres, o filme faz com que o protagonista Marco Ricca, ator com porte e pinta de galã, consiga às vezes ficar parecido com o baixinho Chateaubriand, que estava muito longe de ser um homem fisicamente atraente. Claro que para isso contribui, e muito, seu desempenho marcante, em que ele se entrega de maneira selvagem e despudorada ao papel-título. Não lhe fica atrás Paulo Betti, que dá a seu Getúlio Vargas a combinação de frieza, oportunismo e carisma que caracterizaram o político gaúcho nascido em São Borja e que se matou com um tiro no peito em 24 de agosto de 1954. Suicídio que teria grande peso nos conflitos e contradições que desde então caracterizam a história do país.
Embora todo o numeroso elenco esteja em grande forma, seria impossível não dar um destaque especial à atuação, num personagem que mistura traços de Carlos Lacerda e Samuel Wainer, a Gabriel Braga Nunes (filho do diretor teatral Celso Nunes e da atriz Regina Braga – permitam-me aqui um comentário bem pessoal, a partner feminina com quem tive mais prazer em contracenar) e de Andréa Beltrão, como um mix das muitas mulheres que Chateaubriand seduziu e pelas quais se apaixonou.
Se você quiser entender um pouco o momento que o Brasil atravessa – e aquilo que o futuro próximo nos promete – ou, quem sabe, aquilo com o qual ele nos ameaça – não vacile: vá ver Chatô, o Rei do Brasil.
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