Mais uma vez o Ói Nóis Aqui Traveiz traz em sua nova obra uma homenagem a dois mestres da cena contemporânea e do teatro latino-americano: o encenador russo Meierhold e o dramaturgo argentino Eduardo Pavlovsky. A nova encenação da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, MEIERHOLD, é uma adaptação livre da peça “Variaciones Meyerhold”, de 2005, do dramaturgo, ator e psicanalista argentino Eduardo Pavlovsky. A peça tem estreia nacional dia 29 de novembro, em Porto Alegre e estará em cartaz até 22 de dezembro, de quintas a sábados, sempre às 20h, na Terreira da Tribo (Rua Santos Dumont, 1186).
No centro da trama a figura de Meierhold, célebre ator, diretor e teórico russo, cujo discurso inovador e revolucionário o transformou em personalidade de relevância no panorama teatral do início do século XX. Grande questionador das formas acadêmicas da criação teatral, a postura de Meierhold confronta com as ideias de seu contemporâneo Stanislavski, com quem manteve uma relação ao mesmo tempo estreita e distante. A encenação reúne aspectos do discurso artístico do pensador russo e os relaciona com momentos dramáticos de sua trajetória pessoal, sujeito ao cárcere, tortura e humilhações até o seu brutal assassinato pelas autoridades da Rússia stalinista.
Estruturada em fragmentos, a ação de Meierhold se alterna entre os pensamentos em voz alta a relatos e diálogos imaginários com diferentes interlocutores, como com a sua amada, a atriz Zinaida Reich, também assassinada tragicamente. O espetáculo utiliza-se de diferentes linguagens e recursos, inclusive audiovisuais, fragmentos de poesias surrealistas e cenografia construtivista que remete à utilizada pelo próprio Meierhold. A cenografia é uma adaptação do dispositivo cênico criado por Liubóv Popóva para “O Corno Magnífico”, dirigida pelo russo. Na encenação estão também presentes elementos dos estudos e experimentos do encenador russo como o grotesco, o teatro popular de feira e a biomecânica.
Ligado num primeiro momento ao Teatro de Arte de Moscou dirigido por outro grande do teatro russo, Stanislavski, Meierhold abandonou cedo a via naturalista para construir a sua própria concepção dramática – que denominou “teatro da convenção consciente”– e seus trabalhos experimentais lhe permitiram desenvolver a teoria da biomecânica, um rigoroso método de preparação do ator que tenta explorar ao máximo suas possibilidades físicas e psíquicas. Vsevolod Emilevich Meierhold (1874-1940) elaborou também uma encenação revolucionária e instaurou os princípios do moderno conceito de montagem. Na montagem do Ói Nóis, este homem velho, confinado e exposto à tortura física “por um problema estético”, vê o tempo desorientar-se dentro e fora da sua cabeça. Reclama que até os exercícios de sensibilização do corpo são questionados pelos guardiões do regime. Coerente com seus princípios, Meierhold enfrentou, sem jamais se curvar e ceder, a pressão de um sistema autoritário e absoluto contra a liberdade de criação artística, terminando por cair vítima de sua própria honestidade de artista, da intransigência com que lutou em defesa das suas ideias nos dias sombrios que se abateram sobre a sociedade e as artes russas.
A história de Meierhold não deixa de nos colocar em questionamentos sobre o momento e o lugar em que vivemos. A dinâmica da encenação busca perguntar aos espectadores como Meierhold nos afeta e nos comove no sombrio Brasil de hoje. Eduardo “Tato” Pavlovsky (1933-2015) é conhecido no país pelas suas peças “Senhor Galíndez”, “Telerañas”, “Potestad”, “Passo de dos” e “Rojos Globos Rojos”.
Mais informações sobre MEIERHOLD
Vsevolod Emilevich Meierhold nasceu em 1874, em Penza, na Russia. Foi um importante encenador, ator e teórico do teatro. Em oposição ao naturalismo teatral, desenvolveu uma técnica de encenação denominada Biomecânica. Formando-se ator, em 1898 foi convidado a se juntar à trupe do recém-fundado Teatro de Arte de Moscou (TAM), de Stanislavski, onde trabalhou por quatro anos. Templo do naturalismo e do realismo psicológico, o Teatro de Arte foi a grande escola de Meierhold que, em 1902, decide percorrer caminhos próprios fundando uma nova trupe, a Sociedade do Drama Novo. Passa a inspirar-se no simbolismo, no cubismo e finalmente no expressionismo alemão para desenvolver uma pesquisa de trabalho muito particular. Propôs uma nova abordagem: um teatro que “intoxicaria o espectador com força dionisíaca do eterno sacrifício”.
Em 1905, Stanislavski convida Meierhold para dirigir o recém criado Estúdio do Teatro de Arte. Mais uma vez, ambos irão se desentender artisticamente e o projeto de desenvolverem novamente um trabalho em conjunto é desfeito. Apesar de Meierhold e Stanislavski serem tratados como opostos teatrais – um preocupado com a teatralidade, outro com o conteúdo interno – os dois se admiravam e respeitavam mutuamente. Em 1906, numa reviravolta em sua vida, recebe carta de Vera Kommissarjevskaia – considerada pela crítica como a grande atriz da Rússia – convidando-o para dirigi-la. Fazem juntos muitos espetáculos e quando essa parceria é desfeita, ele vai trabalhar com Teliakóvski, diretor dos teatros imperiais, para espanto da classe artística da época. Para Meierhold a oportunidade foi excelente: contou com meios teatrais praticamente ilimitados. A partir de pesquisas no teatro popular, na commedia dell’arte, as improvisações, a pantomima, o grotesco e o simbolismo cênico, desenvolveu uma disposição frontal das personagens com pesquisas voltadas a expressão vocal do ator e com a substituição da cenografia complexa do naturalismo pela iluminação como síntese e dispositivos cênicos construtivistas.
Em 1913 criou o Estudio Meierhold, sua escola de teatro e passou a se dedicar também à formação de atores. Quando a Revolução Russa aconteceu em 1917, rapidamente se juntou ao Partido Comunista e em 1920 foi apontado como o cabeça do Departamento de Teatro do Comissariado do Povo da Educação Nacional. Em contraposição às mostras de teatro tradicionais criou o “Outubro Teatral”, movimento que transformou os teatros em espaços de discussão política e comunhão com os espectadores. Na sequência deu origem ao ator-tribuno, o artista que não se limita a interpretar seu papel, mas que também agita e atua politicamente, distanciando-se por vezes de sua personagem para fazer com que a mensagem chegue de forma mais clara e límpida ao público presente nos espetáculos. Apesar do compromisso com a causa revolucionária, da consistência dos espetáculos, dos sucessivos sucessos de público, seu teatro começa a ser taxado pelo estado militarista de “incompreensível para as massas”.
Com a montagem de “O Inspetor Geral”, em 1926, atingiu o auge de sua carreira. Os burocratas continuavam defendendo e exigindo um teatro em tudo maniqueísta, por demais simplista, esquematizado ao extremo, ao passo que Meierhold, tomado de impaciência e irritação, começou a criticar as peças e espetáculos sendo, então, perseguido pela crítica oficial, pela classe teatral e por toda uma geração de artistas. Isolado e solitário, passou a fazer frente ao período mais sombrio do stalinismo. Sua reputação, no entanto, não é de todo abalada. Em 1935, Stanislavski irá dizer: “o único encenador que conheço é Meierhold”. Mesmo assim, em dezembro de 1937 o teatro de Meierhold foi fechado. Stanislavski surpreende a todos convidando o artista a trabalhar no novo Teatro de Ópera Stanislavski.
Meierhold, após ser preso e acusado de diversos crimes, ser submetido a intensa tortura física e psicológica é executado em fevereiro de 1940, aos 66 anos. Sua mulher, a atriz Zinaida Reich e também atriz de sua companhia, foi encontrada morta em seu apartamento, pouco tempo depois da prisão de Meierhold. Neste período da história soviética, mais de 1500 artistas foram submetidos ao mesmo brutal ritual estalinista de seleção cultural.
Sobre Eduardo Pavlovsky
Eduardo “Tato” Pavlovsky (1933-2015) ator, autor, médico, psicodramista argentino é um dos principais nomes do teatro latino-americano e mundial. Começou a escrever para teatro no início dos anos 1960. Desde então criou várias peças como “Senhor Galíndez”, “Telerañas”, “Potestad”, “Passo de dos”, “Rojos Globos Rojos”, “Poroto” e “La Muerte de Marguerite Duras”. Criador do Movimento Psicodramático na América Latina. Em 2004, recebeu o prêmio Dionísio de Honra durante o III Festival de Teatro Latino de Los Angeles, pela importância de sua obra em toda América Latina. Em diferentes fases – teatro político metafórico, estética da multiplicidade, micropolítica da resistência – sua obra trata-se de um teatro de balbucios e não de verdades absolutas. Escrever teatro, para Pavlovsky, não é fazer denúncias, propor ideias, mas afirmar sempre a necessidade de resistir e de alimentar ideais. Gestos que se fazem a partir de perdas e derrotas vividas e não de grandes discursos. A função da resistência é produzir subjetividades diferentes das habitualmente impostas, instaurando novos territórios de vida e alegria, inovando afetos e solidariedades.
O teatro de Pavlovsky é a reiteração poética de que devemos mais do que nunca ser utópicos. E a “imaginação criadora” é uma das condições para abrir perspectivas, esperanças de oxigenação para o futuro. “Não há nada mais terrível para o ser humano do que perder a capacidade de sonhar com seus projetos existenciais”, afirmava o dramaturgo.
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