O gabinete negro reúne uma série de cartas ficcionais num atípico romance epistolar que apresenta um dos melhores exemplos da estética cubista que o autor inaugurou na literatura
Figura central no cenário das vanguardas parisienses do início do século XX, Max Jacob (1876-1944) é praticamente desconhecido no Brasil. O gabinete negro – cartas com comentários, que a CARAMBAIA lança pela primeira vez em português, quebra esse jejum e apresenta um dos melhores exemplos da estética cubista que Jacob inaugurou na literatura. Antes ele mesmo havia cunhado o termo “cubismo” para identificar o estilo do jovem Pablo Picasso, recém-chegado a Paris, a quem apadrinhou e por quem foi retratado várias vezes.
O gabinete negro reúne cartas quase sem relação entre si, o que o distancia do formato tradicional dos romances epistolares. Há todo tipo de queixa, pedido, conselho, descrição e declaração nos textos assinados por personagens variados – mulheres e homens de diferentes épocas e posições sociais. Não é difícil perceber nesses fragmentos a possibilidade de desdobramento em novelas e romances, e de fato alguns personagens estão presentes em outras obras de Jacob.
As cartas quase sempre são seguidas de comentários de autoria desconhecida, indicando a existência de um terceiro leitor, ao qual o título do livro se refere: o “gabinete negro” era o serviço de espionagem do Antigo Regime, que interceptava e abria cartas por ordem governamental para detectar trechos comprometedores ou ameaçadores da “ordem”. Diante desses comentários, o leitor final, com o livro em mãos, se depara com o próprio voyeurismo.
Os efeitos cômicos são inevitáveis a partir da tensão entre as formalidades da escrita epistolar e o conteúdo das mensagens, cheias de pequenas intrigas e grandes desaforos. Aprimeira carta do volume já evidencia esse dispositivo: nela, um pai furioso comunica ao filho que deixará de custear os seus estudos depois que o jovem rouba sua amante. Noutra, uma senhora desgostosa com os costumes modernos da capital francesa recomenda à filha os melhores modelos de vestimenta para uma dama da sociedade. Religiosos e juristas entram em cena para tratar de supostos desvios morais de moças libertinas e rapazes vadios.
O autor se oculta sob os personagens e, sempre com a intenção de juntar peças que ora esclarecem, ora confundem o leitor, constrói um mosaico cheio de arestas e confrontos, em chave de sátira de costumes. O jogo de simulações é tal que duas das cartas presentes no volume são verídicas e, no entanto, como observa Pablo Simpson no posfácio da edição, parecem as mais inverossímeis.
Max Jacob nasceu em Quimper, na Bretanha, numa família judia pobre. Em 1894 mudou-se para Paris, onde viria desempenhar um papel decisivo nas artes, sobretudo na poesia, que se produzia nos círculos boêmios da região de Montmartre – que frequentava vestido de maneira inconfundível, com cartola, sobrecasaca e monóculo. Foi um dos primeiros intelectuais a valorizar a pintura de Picasso e tornou-se amigo íntimo do poeta Guillaume Apollinaire, além de interlocutor frequente do compositor Erik Satie e do pintor Amedeo Modigliani. Jacob converteu-se ao catolicismo em 1909, quando disse ter tido uma visão de Cristo. Manteve-se oscilante entre a penitência e a boêmia até se retirar para uma vida semimonástica na abadia de Saint Benoît-sur-Loire, período em que se dedicou à pintura. Apesar da conversão, por causa de sua origem judaica, foi capturado por oficiais da Gestapo em fevereiro de 1944 quando saía da missa. Enviado ao campo de deportação de Drancy, perto de Paris, morreu dias antes de ser transferido para um campo de concentração, aos 67 anos.
Com um estilo marcado por jogos de linguagens e um olhar clínico para os costumes burgueses, em que o humor caminha lado a lado com experiências místicas, a produção literária de Jacob tem entre seus títulos mais importantes a coleção de poesia em prosa Uma caixa de dados (1917), as meditações de A defesa de Tartufo (1919), o longo poema em forma de bric-à-brac O laboratório central (1921) e o romance Filibuth ou O relógio de ouro(1922). O gabinete negro começou com uma reunião de seis cartas publicadas numa revista de tiragem limitada em 1922. Teve nova edição, aumentada, em 1928, e ganhou forma definitiva, com mais cinco cartas, em 1968. Esta é a versão que a CARAMBAIA adotou. Embora nunca lançada no país, a literatura de Jacob, lida no original francês, despertou entusiasmo em alguns de seus contemporâneos modernistas brasileiros, como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e um jovem Sérgio Buarque de Holanda.
O gabinete negro foi traduzido por Luiz Dantas, que foi professor do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (IEL-Unicamp). Falecido em 2008, deixou inédita a tradução deste livro. Sua família doou os direitos de sua publicação para o Instituto Boldrini, de Campinas (SP), hospital filantrópico especializado em oncologia e hematologia pediátrica. O posfácio é de Pablo Simpson, professor do Departamento de Letras Modernas da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de São José do Rio Preto (SP).
O projeto gráfico, de autoria de Paula Astiz, inspira-se na leitura clandestina empreendida pelo Gabinete Negro do Antigo Regime: para que o leitor consiga ler os comentários, precisa abrir e fechar as cartas – assim como faziam os censores.
Ficha técnica:
Título: O gabinete negro – cartas com comentários
Autor: Max Jacob
Tradução: Luiz Dantas
Projeto gráfico: Paula Astiz
ISBN: 978-85-69002-34-5
Número de páginas: 248
Ano de publicação: 2018
Acabamento: brochura
Dimensão: 15,5 x 21cm
Tiragem: 1.000 exemplares
Preço: R$ 76,90
Editora: Carambaia
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