Milton Ribeiro
Evandro Matté já era o Diretor Artístico da Orquestra Unisinos Anchieta quando assumiu a mesma função na Ospa. Chegou ao novo cargo no início do governo Sartori e é uma exceção no enorme leque de críticas que o governo recebe, principalmente em Porto Alegre.
A entrevista sobre o novo momento que vive a Ospa foi feita no último sábado no Agridoce Café. Acreditamos que o caráter da conversa — muito informativa — foi descansado, ainda mais se considerarmos a folga que tivemos do calor.
Os assuntos foram muitos. Afinal, após mais de uma década, a Ospa voltará a ter um mesmo local para ensaios e concertos, o Conservatório Pablo Komlós irá para o Palacinho e será ampliado, a orquestra voltará a excursionar, novos músicos foram nomeados em troca do enxugamento do setor administrativo, o tradicional dia de concertos será mudado, entrando num padrão que é internacional, etc. Ou seja, assunto não faltou.
Em apoio, contamos não somente com os cafés e o tiramisù do Agridoce, mas também com as excelentes fotos de Guilherme Santos. Ao final de entrevista, notei que tanto Evandro quando Guilherme têm seus instrumentos de trabalho tatuados no antebraço direito.
Impossível não notar uma tatuagem no braço de um descendente de italianos que usa muito as mãos para falar e ainda é regente de orquestra, imaginem. Mas vamos à entrevista:
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Guia21 — Mesmo com a crise financeira, com o Governo do Estado cortando tudo, com a Cultura eternamente na linha de frente para os cortes, a Ospa conseguiu um bom ano, com crescimento, planos de nova sede, nomeações, etc. Qual é o segredo?
Evandro — Esses 27 anos que estou na Ospa foram uma grande escola. Além de trompetista e regente, fui presidente da Associação de Músicos da orquestra. Sei como se sentem os músicos. Sei que quem administra não deve ficar apenas focado na programação, mas também na estrutura da Fundação. Houve períodos em que nos tocávamos em cadeiras de plástico amarelas, as estantes eram complicadas de usar, eram totalmente inadequadas. Então, se algum dia eu assumisse a Ospa — algo para o qual me preparei –, eu queria não somente olhar a parte artística, mas também a estrutural. Quando fui convidado pelo secretário Victor Hugo, em razão do trabalho que eu fazia com a Unisinos e nos Festivais do Sesc, elaborei uma série de metas ou objetivos. Minha lista de prioridades está quase toda cumprida. A ideia prioritária era de resolver as questões estruturais que atrapalhavam a orquestra para que a Ospa pudesse dar um salto. Precisávamos de estabilidade no trabalho e no fluxo financeiro, apesar da crise. No último quesito, usamos nossa rede de relacionamentos, mas não podemos jamais reclamar do governo, que nos apoiou inclusive com suplementação orçamentária em alguns momentos.
Guia21 — Conta um pouco da tua vida como músico antes de chegar ao cargo de Diretor Artístico da Ospa?
Evandro — É uma longa história. Eu conheço muito bem a instituição. Na verdade, se somar tudo, minha história na Ospa tem 30 anos. Eu tenho 47. Fui assistir pela primeira vez a uma orquestra sinfônica em Gramado quando tinha 13 anos. A banda marcial onde eu tocava foi a um concerto em Gramado e, para minha sorte, a Ospa ia tocar a 9ª Sinfonia de Beethoven regida por Eleazar de Carvalho. Foi a primeira vez que estive frente a frente com uma orquestra. Eu sou filho de um mecânico e de uma dona de casa e a cultura não era algo muito presente dentro de casa. Aquilo me impressionou muito. Ao final do concerto, subi no palco e perguntei para os trompetistas como se fazia para entrar na Ospa… Eu tocava desde os 7. Eles riram, mas ficou aquele desejo. Aos 17 anos, eu vim para Porto Alegre. Trabalhava no Banco do Brasil como boy (menor auxiliar). Para enganar a família, fiz vestibular para Engenharia Civil. E, no mesmo ano, na verdade no mesmo dia em que entrei na Engenharia — acabei fazendo todas as cadeiras do curso, faltou só o estágio — entrei também na Escola de Música da Ospa. E, quando terminei a Engenharia, passei no Concurso da Ospa como trompetista. Então desisti do estágio e do título de engenheiro para ser músico. Quando comecei na Ospa, fiz vestibular para Música na Ufrgs, me formei aqui e fora, segui toda a carreira de trompetista. Então eu estou vinculado a Ospa faz 30 anos, 27 como músico da orquestra. Eu vivenciei períodos muito difíceis, quando todos reclamavam de uma orquestra que, na verdade, não tinha as mínimas condições de trabalho e pouco respaldo. Passamos por diversos governos e diretores artísticos, alguns muito bons.
Guia21 — Neste semestre deve ser inaugurada a Casa da Música da Ospa, como estão as obras e de onde surgiu este nome?
Evandro — Devido a vários problemas, a construção da Sala Sinfônica da Ospa foi suspensa e substituída pela Casa da Música. Hoje, é onde ensaiamos. Nós mudamos o nome para não haver confusão entre o plano antigo e o novo. O nome foi inspirado pela magnífica Casa da Música na Cidade do Porto (Portugal). Nossa sala de ensaios irá se transformar numa sala sinfônica e em outras coisas que falarei a seguir. Por vários motivos, eu defendia esse espaço para a Ospa há 15 anos. É um espaço que está dentro do complexo administrativo do Governo do Estado, era um local que já estava semi-pronto, pois, no plano diretor, era para ser um Centro de Convenções com um Teatro. A Secretaria de Educação ocupava o espaço que deveria ser o Centro de Convenções e a estrutura do Teatro estava fechada com tapumes há 48 anos… Imagina que ele tem um ângulo de plateia, que cabem 1100 pessoas, que tem um estacionamento embaixo para 300 vagas e mais 1000 fora. Então, como o projeto anterior foi ficando cada vez mais inviável em razão de questões financeiras e burocráticas, além do fato de que, das duas empresas que venceram a licitação, uma não era séria e a outra quebrou… Ficamos sem empresas para fazer as obras. Teríamos que fazer novas licitações e isso demora. Além do mais, precisaríamos buscar um dinheiro do governo federal que, sabemos, dificilmente seria liberado com agilidade. Mas o mais importante é o seguinte. Qual seria o custo de manutenção do novo espaço? Seria absurdo. Para nós mantermos o novo prédio, seríamos obrigados a baixar o nível artístico para pagar contas de manutenção, o que já ocorrera no passado com antigo teatro Leopoldina. Então chegamos ao projeto no Caff (Centro Administrativo Fernando Ferrari).
Guia21 — O que é este projeto?
Evandro — Uma Sala de Concertos para 1100 lugares, com mezaninos, saguão e memorial com fotos de todos os músicos e regentes da orquestra desde a fundação, mais bilheteria, chapelaria, depósito, arquivo de partituras — pela primeira vez teremos isso em nosso local de ensaio –, salas de estudo, camarins, cafeteria, restaurante e sala híbrida para recitais e eventos. Nesta sala, pensamos em fazer um programa chamado Minha Primeira Vez, destinado a quem nunca foi a um concerto, para aprender noções. Isso gera uma vinculação, é o que desejamos. Temos uma LIC aprovada e as empresas estão vindo. Talvez a gente não consiga deixar a sala disponível para o dia 10 de março, que era a nossa intenção. Mas esperamos abri-la no final de março.
Guia21 — Quais serão as vantagens do novo espaço?
Evandro — Primeiramente, os 1100 lugares, que é um número muito bom para a Ospa e Porto Alegre. Já falei no arquivo de partituras. Também há o ponto, a localização é ótima e nós vamos ter um custeio muito baixo. Ou seja, o novo espaço só vai nos gerar receitas. Luz, IPTU, segurança, tudo está dentro do complexo do Centro Administrativo. E a Ospa ainda poderá explorar o estacionamento coberto, bar e restaurante. Vamos poder locar a Sala quando a Ospa não a estiver utilizando. Ou seja, será um grande salto para a orquestra. Mas o mais importante mesmo é o salto artístico. Depois de muitos anos, vamos ensaiar no local do concerto.
Guia21 — E a acústica da Sala?
Evandro — Neste primeiro momento, estamos apenas ensaiando lá. Somos bastante conscientes dos atuais problemas de acústica, mas eles estão sendo sanados pelos especialistas que contratamos. Nós temos casos em Nova Iorque e Paris em que salas foram fechadas para acertos. Depois, houve a retomada. São muitas pequenas variáveis que influenciam. É claro que a aplicação dos conceitos básicos já deve melhorar muito nossa condição atual. Vamos chegar certamente a um ponto ótimo. Agora, estamos nos dedicando a reduzir a reverberação e seguir um processo de melhoria contínua.
Guia21 — Vocês têm um crowdfunding em andamento, não?
Evandro — Sim, mas isso é para pagamento de parte do projeto, não do projeto completo. Há um esforço para a venda de poltronas que receberão o nome de quem contribuiu. Temos uma LIC especial, porque é para patrimônio público, que dá 95% de abatimento. Estamos visitando empresas com excelente retorno. Isso visa a obra civil para finalizar a Sala de Concertos e o saguão, o que permitirá que a gente abra a Sala para o público. E a segunda etapa é o restante.
Guia21 — Há a ideia de endowment?
Evandro — Isso seria um sonho. Está na minha lista. É algo que nos daria sustentabilidade a longo prazo. Porém, no Brasil não há a tradição de retornar à sociedade aquilo que ela deu a alguém. Não há quase mecenato. É muito complicado, mas seria o ideal pela longevidade que daria à Fundação. O endowment é perfeito para uma fundação como a nossa porque o principal nunca pode ser mexido, apenas o rendimento. Mas o fundo demora a ser criado, ainda mais no Brasil. Imagina que Harvard tem um fundo de endowment de 4 bilhões de dólares. Eles mantém toda a pesquisa da Universidade só a partir destes rendimentos. Quem investe em um endowment tem a segurança de que o dinheiro doado não será “torrado”, mas dará frutos contínuos. Eu gostaria de criar o endowment da Ospa, mas hoje não há nem segurança jurídica para fazê-lo.
Guia21 — Como fica o antigo projeto de Sala Sinfônica? Quais são os planos para ela? Ficará no papel?
Evandro — Aquele terreno é nosso e localiza-se em local nobre. Houve investimento em fundações e não podemos ignorar que 6 milhões de reais foram investidos ali. Nós vamos chamar um concurso pelo IAB para reestruturar o projeto, aproveitando o investimento feito nas fundações que lá estão. Nós vamos criar uma concha acústica no local. Eu não gosto deste termo, prefiro falar em Teatro Aberto. Ao lado deste teatro, haverá dois pequenos prédios: um para a Escola da Ospa — para aqueles que vão ter sua iniciação no instrumento, não falo do Conservatório — e outro para o Museu da Ospa. O primeiro seria um projeto social mesmo. O Teatro Aberto nos permitiria concertos de verão e locações para shows. Seria mais uma forma de receita.
Guia21 — Poderia nos falar sobre o milagre das nomeações?
Evandro — (risadas) Eu ganhei três jantares em apostas. Ninguém acreditava na possibilidade de haver nomeações. O que aconteceu foi que nós enxugamos num ponto para sobrar do outro. Nós tratamos de mostrar ao governo a importância da Fundação Ospa, tudo o que ela dá de retorno para a sociedade. Paralelamente, nós pegamos o quadro que foi criado em 2014 no governo Tarso pelo secretário Assis Brasil e pelo ex-Diretor Artístico Tiago Flores. Esse quadro trazia um setor administrativo muito grande. Havia mais cargos do que o necessário. Então, uma das contrapartidas que nós oferecemos foi uma redução da estrutura administrativa para priorizar a contratação de músicos. Isto gerou também uma redução na contratação de músicos extras. Além do mais, nós tivemos boas receitas durante este período. Acabamos conseguindo.
Guia21 — Quais são os ganhos sociais e culturais que a Ospa dá?
Evandro — Os ganhos são claros. Há o trabalho social feito pela Escola da Ospa. Nós ampliamos muito o número de alunos que na Escola não pagam pelo aprendizado. É um trabalho social onde os professores são os músicos da orquestra. Ampliamos as atividades do coro e da Ospa jovem. Houve também uma ampliação de público. Nós estamos com 30% a mais de público do que na gestão anterior. Criamos os concertos no Margs. Com a diversificação das séries de concertos, estamos em muitos locais. Temos os concertos no interior, no Araújo Vianna, na Ufrgs, nas igrejas, no Theatro São Pedro, etc. Isso nos deu um crescimento do público dos concertos. Temos também muita mídia. Hoje a Ospa aparece muito graças a vocês da imprensa. E há o reconhecimento da sociedade como um todo, porque aumentamos a captação em 400%.
Guia21 — A Ospa vai viajar bastante em 2018, não?
Evandro — Nem tanto. As idas ao interior permanecem na mesma base, mas é natural que, neste quarto ano de gestão, comemoremos o que se obteve. Vamos mostrar a Ospa que está em excelente nível artístico. Vamos a Campos do Jordão, à Sala São Paulo, ao Sodre em Montevidéu e ao CCK em Buenos Aires. Gravaremos também um CD em maio.
Guia21 — Outra mudança histórica, e esta envolve o público, é a mudança de horário e do dia dos concertos após 67 anos.
Evandro — Desde o tempo em que eu era músico, achava absurdo nosso esquema de ensaios com um fim de semana no meio. A gente ensaiava quinta, sexta e sábado pela manhã, parava no domingo, tínhamos mais ensaios na segunda e terça, dia também do concerto. Nunca vi outra orquestra que trabalhasse assim. Todas as orquestras fazem o trabalho dentro da semana, e apresentando o concerto no final da mesma. Outro problema são os regentes convidados. Quando eles são de determinado padrão, têm agendas mais lotadas, sempre com trabalhos de ensaio e apresentação dentro de uma única semana. É claro que, para vir à Ospa, eles tinham que reservar duas semanas. O padrão é a semana. Qualquer regente nos pergunta: “Qual é a semana?”. Outro fator é o público. Tenho feito levantamentos de como trabalham Osesp, OSB, Minas e orquestras do exterior que tenho regido ou não. As quintas-feiras têm o menor público, nas sextas já é maior e nos sábados lota. Não há sentido em manter os concertos às terças à noite. Pior: as pessoas de mais idade, com a violência e a insegurança, não vão aos concertos às 20h30 das terças. O horário de sábado, às 17h, permitirá que as pessoas saiam de casa mais tranquilas. Por exemplo, a série de música de câmara que eu criei no Margs — nos dois primeiros meses, o horário era o das 18h30 e o público era médio. Quando passamos para às 16h30, passou a lotar.
Guia21 — As atrações deste ano?
Evandro — Para confirmar, eu preciso ter a data em que inauguraremos a Casa da Música da Ospa. Mas traremos o balé do Colón de Buenos Aires, a ópera A Viúva Alegre e uma turma de regentes muito boa, como têm sido nos últimos anos.
Guia21 — Nós passamos por cima de outra novidade, a utilização do Palacinho pela Escola de Música da Ospa.
Evandro — Sim, é um local impressionante, muito bonito, de 2500 m². Lá há vitrais e escadarias belíssimas. Foi-nos cedido por 30 anos. Nesta primeira fase, começaremos com o mesmo nível de conforto da atual escola, mas com muito mais salas. Num segundo momento, já temos aprovada uma Lei Rouanet de restauro na casa de 4 milhões de reais. Ainda vamos tentar recuperar algo do valor que seria destinado para a Sala Sinfônica do Parque da Harmonia para o Palacinho. A outra parte seria para a Concha Acústica (Teatro Aberto). A mudança para o Palacinho está prevista para entre os meses de abril e maio. Passaremos de nossas atuais 7 salas de aula para 22 e levaremos a administração da Ospa junto para lá. Isso é mais economia, porque a administração na 24 de Outubro, zona nobre próxima ao Parcão, é muito onerosa. Só o condomínio já é absurdo. E vamos aumentar o número de instrutorias no Palacinho, claro.
Guia21 — Para finalizar. Sei que tu também administras a Orquestra da Unisinos, os Festivais do Sesc e os concertos Zaffari. Como é que tu consegues fazer tudo isso? Como convivem o gestor, o regente e o trompetista?
Evandro — O trompetista está parado, mas pode ter que voltar. O cargo que ocupo é de confiança e as administrações mudam. Hoje eu toco muito pouco. Quanto às outras atividades, posso dizer que sempre fui acostumado a trabalhar muito. Deve ter vindo no DNA, porque meu pai é também assim. Durmo pouco e trabalho muito. Minha vida sempre tem três turnos, mas o terceiro eu considero prazer. Corro e resolvo coisas durante o dia e, no terceiro turno, à noite, estudo. A gente tem que saber o que está fazendo na frente de orquestra porque senão os músicos te engolem… (risadas). Mas, na verdade, eu tenho pouco lazer e preciso mudar isso em minha vida.
Marcos Machado diz
É realmente muita coisa boa. Eu tenho minhas críticas às vezes aos métodos, mas o fato é que realmente ele conseguiu transformar a OSPA numa ilha no RS e até no Brasil, se observarmos a miséria que estamos passando.
Maria Luisa diz
Que entrevista bacana e aprofundada!
Murilo Timm diz
É necessário informar ao maestro que ” A Viúva Alegre “, de Franz Léhar não é uma ópera ,como equivocadamente ele a citou. É uma operetta. Não fica bem a um regente que faz o auto-elogio em uma entrevista superficial cometer um erro desta natureza. Pelo que vejo o maestro não lê muito.
claudia diz
Que implicância com um Maestro que tem conseguido tantas conquistas para a OSPA . O Maestro anterior, pelo que entendi, preferia aumentar o quadro administrativo…
Lúcia Maria Dias diz
Ah, que notícias boas… E adorei a mudança do dia, Para mim, agora, vai ficar possível voltar a frequentar os concertos. Bah, fiquei muito feliz!
Sadi Antunes Silva diz
Excelente entrevista. Ele parece um bom organizador. E tudo que melhora a música clássica nesta cidade é ótimo.