O livro Do mundo, suas delicadezas, de Erre Amaral (Penalux, 2017), é um verdadeiro aprendizado épico-epistolar de formação de uma mulher. A voz feminina, como narradora, conduz um leitor específico, um homem, seu amado mágico. A narradora se dirige a este leitor impossível e não mais existente, criando-se um leitor imaginário, como se uma carta bem elaborada fosse escrita, se dirigindo a ele num tom épico em que vai contar suas vitórias e agruras de uma heroína que é, paradoxalmente, uma anti-heroína. As figuras masculinas conhecidas da tradição tanto bíblica quanto mitológica, comparecem, sendo subvertidas e transformadas pela ótica feminina. O olhar feminino é o tom maior que se dá nesta narrativa de Erre Amaral. Por exemplo, quando a narradora-personagem Pretinha fala de sua prima que se prostitui, sai de casa e volta como filha pródiga ao lar, como não nos lembrarmos do “Filho Pródigo”, do relato da Bíblia? Ou quando, no canto das sereias, relembrando Ulisses, em sua odisseia, a narradora e personagem principal deste livro magnífico, apelidada de “a minha preta do meu amor”, pelo seu amado mágico, escuta os sons externos com seus “ouvidos cegados” que “Ouviram o que quiseram ver,”.
A inversão de valores bíblico-mitológicos só reforça este diálogo intertextual, revelando a originalidade da força poética de uma voz feminina como narradora e personagem principal, que pelo seu lirismo encantador suaviza a miséria, a crueldade e maldade humanas. Temos neste livro uma voz que tanto eufemiza como hiperboliza a realidade, dando um tom mimoso, carinhoso, ou, como o próprio título define, delicado (com diminutivos, dando numa linguagem familiar, íntima), ao real, mas que aponta para uma ironia sagaz, como na imagem da serpente que se enrosca em coisas doces e belas, a questão do mal em sua narrativa nos mostra o lado demoníaco e subterrâneo em toda a humanidade. Do lado angelical da menina-moça Pretinha, temos sua transformação que toma corpo pelo viés erótico, mas também cruel, pelo seu desejo de vingança ao violador Reinaldo de sua inocência erótico-amorosa pelo mágico. Temos uma descrição belíssima e poética da cena de amor entre Pretinha e seu amado mágico, em que o implícito prepondera sem nos ferir com uma pornografia chula, como estamos acostumados a ver na contemporaneidade, mas com um erotismo de alto nível que só os grandes poetas conhecem.
Temos para cada parte do livro escrito (duas) todas as letras minúsculas e, no final, uma vírgula, e não ponto final, dando ideia de continuidade, de que a narrativa vai ter prosseguimento e deve continuar. Encontramos, no entanto, durante todo o corpo da narrativa (com o título dos capítulos-poemas das duas partes) os versos escritos com inicial maiúscula e também terminando sempre com vírgula, isto nos dá ideia de um tom maior, a narradora quer dar grandiosidade ao que se quer narrar no método poético através da característica épica da narrativa, como se o título, também, que termina com vírgula e os capítulos também fizessem parte do poema, parte do constructo poético. Neste livro, convivem gêneros variados, em que o autor subverte a ótica clássica de gêneros estanques. Temos um romance em forma de versos, mas que não deixa de ter seu tom epistolar. Se nos lembrarmos da origem do gênero épico ou narrativo, nos deparamos com as grandes epopeias que eram escritas em formas de versos. A forma mágica de Erre Amaral nos conduz a partir de sua originalidade que produz um verdadeiro monumento literário, mesclando formas e estilos diversos, dando grandiosidade à sua narrativa, As vírgulas constantes criam um rico paradoxo. Além de revelarem uma pausa, um respiro, a uma história de fôlego, pujante; dão a ideia de que as histórias devem ter um motor contínuo, não demonstram algo acabado, suspenso, parado, mas da continuidade de todas as histórias. Uma progressão milimetricamente pensada e elaborada com grandeza por Erre Amaral.
Essa ideia de movimento, progressão através das formas se adequa belamente ao conteúdo, pois as borboletas, sempre presentes no livro nos levam para o mundo do imaginário, que não tem a placidez da estátua, mas a flexibilidade de uma borboleta, como sua própria narrativa, como nos conduz ao belo e flutuante movimento das borboletas, suas metáforas. A imagem para o símbolo da narradora, ágil, arguta, vivaz, flutuante, transformadora e para a própria narrativa, que se mesclam (narradora e narrativa) é a da borboleta. No Dicionário de símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant: “Graça e ligeireza, a borboleta é, no Japão, um emblema da mulher; (…) Ligeireza sutil: as borboletas são espíritos viajantes; sua presença anuncia uma visita ou a morte de uma pessoa próxima.” Por outro lado, o avesso das belas borboletas coloridas e benfazejas que percorrem o externo e o interno, o “ventre”, de Pretinha, é a azougada mariposa que aparece para dar tragicidade ao tom épico. O drama também convive nesta mistura de gêneros, que vai desde o épico, o poético, o epistolar e o dramático, numa riqueza de formas excepcional produzida por Erre Amaral, que só pode ser reinventada por quem conhece e tem domínio da técnica escrita como este escritor de Porto Velho (RO).
As diversas formas colhidas pelo autor, na sua conciliação de opostos, mostra a força do olhar, dos olhos. Esta é uma imagem recorrente na narrativa. A imagem poética concilia opostos, como vista pelo grande crítico e poeta Octávio Paz, que dizia que o pesado pode ser o ligeiro. A conciliação da delicadeza com a crueldade neste livro fantástico recria a imagem poética em toda sua força, conduzindo-nos a um olhar inaugural da narradora-personagem Pretinha. No texto “Janela da alma, espelho do mundo”, Marilena Chauí diz: “Porque cremos que a visão se faz em nós pelo fora e, simultaneamente, se faz de nós para fora, olhar é, ao mesmo tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si”. Neste sentido, Pretinha carrega um mundo dentro de si que precisa ser projetado para fora, pelo seu olho mágico e encantador, revelando o peso e a leveza da vida. A força dos afetos em Pretinha é imensurável e revela a delicadeza do poético que pode suavizar o mal que adentra os poros da humanidade, do mundo.
Se no início do livro temos as funções bem delimitadas do homem (mais bruta) e da mulher (mais delicada), como de Eliezer e a mãe de Pretinha, Santinha, isso vai se desmanchando ao longo da narrativa a partir do dom pela escrita de Pretinha. Esta é conhecedora da natureza, de suas espécies e minuciosidades. Como uma pessoa letrada ela ganha um Almanaque do seu amado mágico, o livro sobre todas as coisas e, aqui, invenção e realidade se mesclam, pois ela se pauta na sua vida por este livro maravilhoso. Apesar de Pretinha ser descrita por sua fragilidade, ela vai ganhando força e malícia com relação à vida. Ela se torna uma excelente observadora do externo e do interno, percebendo suas minúcias, seus detalhes. A narradora-personagem no início do livro enumera as várias espécies de borboletas e depois se especifica numa, a maldita mariposa. Esta é internalizada na vida das tristes histórias de seus familiares, com o sofrimento, a loucura, a dor. É tamanha a força poética e lírica de Pretinha que o mal pode ser domado, amenizado. A força poética eufemiza o mal, Pretinha busca a utopia, outro mundo, uma utopia de amor num mundo cruel. Mas é, paradoxalmente, pela realística da crueldade, que o mal ganha sua dimensão hiperbólica, sendo domesticada, no entanto, pelo lirismo.
Neste romance-canção, que tem ritmo, musicalidade, o seu lado lírico, encontramos a feiura, a crueldade, no peito de Pretinha, com sua vingança de morte e também pela busca da prostituição. Mas este caminho anti-heróico é dosado pela força redentora e conciliatória no final pelo próprio viés da escrita, pela força do literário. Em certas descrições, a narradora-personagem ressalta a cor da pele, mostrando todas as cores multifacetadas, uma realidade múltipla e complexa como requer Erre Amaral. Temos neste escritor fascinante, um livro dentro de um livro, Pretinha dentro do Almanaque e da vida, um verdadeiro labirinto linguístico de variadas formas. A narradora enumera coisas na horizontal e na vertical, para mostrar a multiplicidade das formas e a quebra do nivelamento artificial de posturas estanques. Pretinha descreve como se estivesse lá, no passado da narrativa, traz o presente para o passado. E Pretinha utiliza justamente os versos começando por letras maiúsculas para dar a grandiosidade do ato de narrar por uma voz feminina.
O poder de invenção da menina, desde a infância, o dom de criar, justifica a narrativa atual. A partir do relato bíblico do tio Zé, cria sua narração adequada a sua vida e pessoa numa parte do livro. Isto revela a capacidade de narrar, a potência de sua narrativa. A linguagem de Pretinha é riquíssima em paradoxos como na imagem da bolha de sabão que é do “…tamanhinho imenso do nosso amor,”. A narrativa carrega caixinhas dentro de caixinhas, e surpresas acontecem a todo tempo, quebrando nossa expectativa. O final é surpreendente, milagroso e epifânico. São histórias dentro de histórias, como caixinhas mágicas. E como não nos lembrarmos do poder do ilusionismo? O livro é uma garrafa de afetos, Erre Amaral garimpa também as formas dos afetos que são construídas pelas afinidades, como entre o cego Omerinho e Pretinha a partir das semelhanças pela invenção de histórias e pelos desafetos, como entre ela e Reinaldo, o seu violador, e o violento Ferreira que chicoteia um negro livre até a morte.
Erre Amaral é um garimpeiro de formas e de símbolos, produzindo uma obra do tamanho do mundo e suas estranhas “delicadezas”. Mescla o sofrimento com alegrias, a dureza com a leveza, como a forma da imagem requer. A miudeza, a minúcia, é sua delicadeza. A narrativa produz uma circularidade, como o próprio ritmo da poesia. O seu olhar é enigmático. “Quem mais olha menos vê,” como dito pelo mágico revela a agilidade de sua narrativa, que misturando diálogos como parte da narração não segue o padrão tradicional do discurso direto dramático. A sua narrativa bem revela o dom do mágico, o de fazer desaparecer e aparecer a caixa. São inúmeras caixas que se abrem em sua narrativa. O diálogo entre Pretinha e o mágico no abrir-se para o sexo é uma das partes mais belas do livro. Como não nos lembrarmos do erotismo do “Cântico dos Cânticos”, do rei Salomão? Não é algo explícito, aberto e agressivo que revela um contraste com o recato anterior no livro. É algo extremamente lírico, belo e poético. O sexo serve como amadurecimento de Pretinha, o passar do tempo, a transformação de menina-moça em mulher.
A força da ambiguidade que carrega sua narrativa é ímpar. Da crueldade à delicadeza, Erre Amaral consegue ir de um extremo a outro com maestria. Mistura também o sagrado e o profano, como na imagem da Santa Pretinha após a prostituição e no Almanaque profano, espécie de bíblia que contém o segredo de todas as coisas. A riqueza da urdidura da ordem e do restabelecimento (redenção) metaforizada no trabalho de tecelagem da mãe de Pretinha que impõe uma ordem ao caos da menina com a figura das três fiandeiras que remontam ao mito grego. O livre-arbítrio que fere o destino das fiandeiras e impõe uma ordem outra por Pretinha que controla sua própria vida-sina. É a escrita o dom maior que desconstrói o destino imposto. Pretinha se vê na “inteireza de sua imperfeição”. No espelho que ela ganhou do mágico, um dos seus presentes, como o Almanaque, ela se mira e percebe a multiplicidade de suas faces. A relação com as cores branca e preta, na narrativa, é outro recurso que ocorre, mostrando os seus inúmeros entrelaçamentos. Temos, assim, nesta narrativa de Erre Amaral o garimpo certeiro de pedras preciosas e mágicas com um livro que vai fincar raízes na história de nossa literatura.
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Por Alexandra Vieira de Almeida é Escritora e Doutora em Literatura Comparada (UERJ).
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